quarta-feira, 26 de novembro de 2008

MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social dos contratos.

MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social dos contratos.

Estrutura: Introdução. A liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato. A liberdade de contratar será exercida em razão da função social do contrato.

Resumo:

O primeiro princípio a aparecer no texto do art. 421 do Código Civil (a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato) é o princípio da liberdade contratual. A liberdade é valor fundante, decorrência do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Não se trata, porém, de uma liberdade exercida no vazio, mas de uma liberdade situada, a liberdade que se exerce na vida comunitária. Daí a imediata referência à função social do contrato. Essa força estruturante de uma nova dogmática contratual deve ser compreendida por meio de dois distintos níveis de compreensão semântica da expressão função social tal qual posta no texto.

Toda função é uma competência dirigida a uma finalidade. Na interpretação da expressão função social o problema não está no substantivo, mas no adjetivo. O que significa exatamente o social que qualifica a função? Dizendo respeito a um direito subjetivo (isto é à liberdade de contratar) o social está conotado ou à expansão intersubjetiva da liberdade ou à expansão trans-subjetiva da liberdade, ou mesmo a ambas dimensões? A liberdade será exercida nos limites da função social ou a liberdade de contratar será exercida em razão da função social.

Liberdade será exercida nos limites da função social. O início do séc. XX veio traçar uma nova trilha, agora em direção à funcionalização do direito subjetivo. São formuladas teorias negativas ao conceito de direito subjetivo, substituindo-o por outras figuras. Entre as mais relevantes estão as de Léon Duguit, que reconstrói a idéia de direito subjetivo afirmando existirem posições vantajosas para certas pessoas porque garantidas pelo poder estatal, na medida em que desempenham funções dignas dessa garantia; e de Otto Von Gierke, sustentando a existência de limites imanentes aos direitos, decorrentes da impossibilidade da existência de direitos sem deveres. Desde então, toda a teoria do direito subjetivo está polarizada entre duas teses: a dos limites internos ao direito, e a dos limites externos.

Se a esse papel de previsão de limite externo negativo se resumisse o princípio da função social do contrato, o art. 421 seria virtualmente inútil, uma vez que o exame de casos já decididos pela jurisprudência demonstra que, ou as hipóteses já estão apanhadas pela regra do art. 187 do Código Civil (ilicitude de meios), ou não se trata de caso de incidência do princípio da função social, mas hipóteses de interpretação favorável ao aderente, integração segundo a boa-fé, ou casos já regulados em leis especiais, como o Código de Defesa do Consumidor ou o Estatuto da Terra.

A expressão em razão da indica, concomitantemente: a) que a função social do contrato integra, constitutivamente, o modo de exercício do direito subjetivo (liberdade contratual); b) que é o seu fundamento, assim reconhecendo-se que toda e qualquer relação contratual possui, em graus diversos, duas distintas dimensões: uma, intersubjetiva, relacionando as partes entre si); outra, trans-subjetiva, ligando as partes a terceiros determinados ou indeterminados. A função social não opera apenas como um limite externo, é também um elemento integrativo do campo de função da autonomia privada no domínio da liberdade contratual. Percebe-se assim decorrerem várias eficácias próprias ao art. 421, repartidas nos dois grandes grupos: as eficácias intersubjetivas e eficácias trans-subjetivas.

No grupo das eficácias intersubjetivas está a possibilidade da imposição de deveres positivos aos contratantes, pois o direito subjetivo de contratar (direito de liberdade) já nasce conformado a certos deveres de prestação. (a) O grupo dos contratos que instrumentalizam a propriedade de bens de produção tem uma interface direta com o princípio da função social da empresa e com o princípio da função social da propriedade. Em ambos os campos a nota dominante é a da prevalência dos valores e interesses comunitários sobre os individuais. A especial densidade da empresa na vida comunitária está na raiz de deveres negativos e positivos, alguns deles pontualmente previstos em leis, outros derivados da conexão do princípio da função social com outros princípios constitucionais e legais, como a proteção ao meio-ambiente ou a redução das desigualdades regionais. (b) Por sua vez, a idéia de contratos que viabilizam “prestações essenciais” para uma das partes foi posta por Teresa Negreiros ao considerar como eixo para a concretização da “função social” não “o contrato”, instrumento jurídico, mas o objeto (ou bem da vida) que o contrato visa instrumentalizar. Tanto mais essencial for, para as partes, o bem da vida subjacente ao objeto contratual (como no seguro de vida, no seguro-saúde, no fornecimento de água e energia elétrica, nos transportes etc), maior deve ser a intervenção estatal. (c) Por fim, como item da taxinomia contratual a noção de contratos comunitários. Uma vez que num dos pólos não está meramente o interesse de uma soma aritmética de “individualidades”, mas interesses supra-individuais ou coletivos. Na apreciação desses contratos, os direitos subjetivos de cada um dos contratantes não podem ser vistos de modo atomístico, como se cada um fosse uma entidade isolada, envolvido na hobbesiana luta de todos contra todos.

É, porém, na geração de eficácias trans-subjetivas que reside a função que mais de perto está ligada no em razão da e a que mais fundamente poderá inovar a teoria do contrato. Em termos amplíssimos, significa: o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetadas. A hipótese pode ser exemplificada mediante o recurso a três grupos de situações. (a) Tutela externa do crédito. O problema central está em saber se um terceiro (que não é “parte” no contrato) pode ser responsabilizado, perante o credor, por lesar o direito de crédito, ou, noutra perspectiva, por interferir com o contrato obrigacional. Esse problema implica em, entre outras, saber se é juridicamente possível a interferência de um terceiro sobre o crédito. (b) Outro importante grupo de casos diz respeito à consideração da eficácia na esfera de terceiros determinados. Seu fundamento está na continuidade e na interferência entre esferas de interesse, que se congregam, em múltiplas esferas na vida de relações contratuais, por forma a impor aos gestores das esferas contíguas limites internos que, na convivência ordenada e civil, descendem da socialidade. (c) A mais prestante – e inovadora – eficácia do art. 421 diz respeito, no entanto, à extensão da eficácia – positiva e negativa – a terceiros não-determinados e a bens de interesse comum. Como exemplos que de imediato saltam à mente estão os contratos que, de alguma forma, envolvem o meio ambiente e a tutela da concorrência. Atividade contratual não apenas deve ser não-lesiva; antes, deve ser promocional do meio-ambiente. Como conseqüência, não apenas a responsabilidade contratual pela segurança e garantia do meio-ambiente deve ser estendida a toda a cadeia contratual, caso haja dano, quanto impõe-se aos contratantes deveres positivos de atenção, prevenção, resguardo e fiscalização.

O art. 421 potencializa e permite interpretação ampliativa dos dispositivos legais referentes à promoção da livre concorrência, além de legitimar a imposição de deveres positivos. Aqui está o verdadeiro salto qualitativo que se encontra no art. 421: o entender-se que a liberdade de cada um se exerce de forma ordenada ao bem comum, expresso na função social do contrato, pressupondo internamente conformado o direito de liberdade (de contratar) em campos de especial relevância ao bem comum. Por isso a importância de permanecer, no texto legal, a expressão em razão que, infelizmente, alguns doutrinadores cogitam eliminar.

Marcos Katsumi Kay – N1

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - INTRODUÇÃO

O Código Civil brasileiro de 1916 surge após um longo processo de desenvolvimento histórico e sociológico, que se inicia desde antes das Ordenações Filipinas durante o domínio espanhol. Foi um processo muito interessante e surpreendente de permanência, rupturas suaves, inovações e de respeito à tradição, ainda que esteja clara a transformação.

Neste trabalho, o sentido literal da letra da lei não tem grande relevância. O que se pretende analisar é a maneira pela qual se chegou a esse Código, ou seja, quais - e em que medida - foram os elementos que o influenciaram, quais os fatos relevantes que o precederam e que, para ele, tiveram importância, quais as características da sociedade que o recebeu. Enfim, um Código não surge repentinamente, ele é fruto de um processo complexo cuja compreensão facilita o posterior entendimento dos preceitos nele positivados.

Tentaremos demonstrar esse processo, discorrendo sobre os seguintes tópicos: o processo histórico e sociológico de formação do Código Civil de 1916; a estrutura social brasileira no período de elaboração do Código; a importância do anteprojeto de Teixeira de Freitas; as características substanciais e formais do Código Civil Brasileiro de 1916 e, por fim, a influência do Code, do BGB e da tradição romanista.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - O processo histórico e sociológico de formação

Segundo Orlando Gomes (2003), a história do Direito Civil brasileiro caracteriza-se pela vigência, por mais de três séculos, das Ordenações Filipinas. A longevidade desse corpo legislativo, organizada para Portugal do século XVII, impediu que o país se integrasse no movimento de renovação legislativa das nações ocidentais no século XIX. Ao contrário do que sucedeu com os outros países ibero-americanos, o Brasil não codificou suas leis civis nesse século, passando diretamente do sistema das Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916.

A extraordinária vitalidade das Ordenações Filipinas deve-se, ainda segundo o mesmo autor, possivelmente, a essa imposição de uma fonte subsidiária tão flexível como o direito canônico, o romano e as opiniões de Acúrsio e Bartolo. Um de seus principais defeitos consistia na abundância de omissões, sendo, contudo, o segredo de sua longevidade em Portugal e, mais do que lá, no Brasil.

Também explica essa singularidade de ter durado mais no Brasil a legislação civil baseada nas Ordenações Filipinas o fato de ter se conservado por mais tempo, entre nós, as condições e formas de vida para as quais fora ditada tal legislação. Portugal estava mais próximo da influência exercida no movimento de renovação legislativa, no século XIX, pelo Código de Napoleão. As idéias liberais, que haviam penetrado em Portugal, no começo do século XIX, influíram decisivamente na evolução do direito privado português. Compreensível que houvesse rompido, em muitos pontos, com a tradição representada por leis inspiradas nas necessidades de uma sociedade de tipo diferente, organizada politicamente, então, sob os moldes da monarquia absoluta.

O Brasil permanece fiel à tradição, enquanto Portugal se deixa influir pelas idéias francesas a ponto de consagrar inovações chocantes no seu Código de 1867. Sobre o vasto Império projetavam-se os tentáculos da sociedade colonial baseada no escravo. Embora se fizesse sentir a necessidade de reformar a legislação civil, mediante a elaboração de um código que, por disposição constitucional, deveria ser fundado nas sólidas bases da Justiça e da Eqüidade, malograram, no Império, três tentativas de codificação: a de Teixeira de Freitas (1859), a de Nabuco de Araújo (1872) e a de Felício dos Santos (1881). A circunstância de não ter sido elaborado o Código Civil pátrio no século XIX deve ter concorrido para a preservação, em maior escala, da tradição jurídica lusitana.

Não faltando lembranças ao governo de que a sistematização e a renovação do direito civil se faziam necessárias, o então ministro da Justiça José Thomaz Nabuco de Araújo pediu a Augusto Teixeira de Freitas, advogado reconhecido, aspirante a jurisconsulto, juiz de direito, membro fundador do Instituto dos Advogados Brasileiros, que elaborasse um plano de redação do Código Civil. Este sugeriu que se fizesse primeiro uma compilação sistemática da legislação existente, que seria denominada Consolidação das leis civis. O próprio Teixeira de Freitas dizia, segundo Keila Grinberg (2001), que as Ordenações Filipinas eram "pobríssimas", e pediam "copioso suplemento", muitas vezes tirados da legislação romana, inadequada à realidade brasileira de então. A Consolidação das Leis Civis condensa os resultados da experiência jurídica lentamente acumulada sobre as Ordenações. A influência de Teixeira de Freitas exerceu-se também por meio do Esboço, que inspirou disposições do Código Civil, notadamente da parte geral, do direito das obrigações e de certos institutos do direito das coisas.

Contudo, a fidelidade do Código à tradição e ao estado social do país revela-se mais persistente no direito de família e no direito das sucessões, não dá mostras de um espírito tão radical como o de outras legislações americanas, pois conserva o princípio da indissolubilidade do matrimônio, o regime da comunhão universal de bens, o das legítimas e várias outras normas de certo sentido conservador, explica Gomes (2003).

O Código incorpora certos princípios morais emprestando-lhes conteúdo jurídico, particularmente no direito familiar. Muitos preceitos, por outro lado, estão impregnados desse sentimentalismo tão próprio do temperamento brasileiro, que conduz à benignidade jurídica, como a causa do abrandamento da dureza de certas disposições do direito português. O espírito de tolerância baixou sobre muitas de suas normas, a sugerir e estimular interpretações liberais, que lubrificam a engrenagem dos institutos e amaciam os atritos com as solicitações da sentimentalidade nacional. Na sua elaboração, enfim, jamais se ausenta aquele privatismo doméstico que tem marcada influência na organização social do Brasil.

O Código Civil condensa um direito mais preocupado com o círculo social da família do que com os círculos sociais da nação. Em vários artigos do Código há a preponderância do círculo da família, ainda despoticamente patriarcal. Para o casamento dos menores de vinte e um anos, exige o consentimento de ambos os pais, mas discordando eles entre si, manda que prevaleça a paterna. O marido é o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe administrar os particulares da mulher, fixar e mudar o endereço da família, e autorizar a profissão da esposa. O juiz pode ordenar a separação dos filhos de mãe que contrai novas núpcias, se provado que ela, ou o padrasto, não os trata convenientemente. A mãe bínuba perde quanto aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder. O direito de nomear tutor compete ao pai. Consagra-se, assim, a posição privilegiada homem na sociedade conjugal.

Esse privatismo doméstico parece ser a nota dominante em nossa legislação. Explica-se por particularidades de nossa organização social, destacadas por sociólogos e estudiosos do meio brasileiro e pelo atraso de sua evolução. As forças íntimas de nossa civilização elaboram-se no campo. Até ter sido abolida a escravidão, pouco antes, por conseguinte, de ser iniciada a elaboração do Código Civil, a estrutura de nossa sociedade tem a sua base fora das cidades. A influência da organização social do Brasil-colônia faz-se sentir até o fim do século XIX, e é nos primeiros anos do século XX que começa a discussão do projeto de Código Civil elaborado por Clóvis Beviláqua. Natural, assim, que repercutisse, na sua preparação, aquele primitivismo patriarcal que caracterizou o estilo de vida da sociedade colonial. Razões históricas e ecológicas modelaram-na por forma a que preponderasse na organização social, a ordem privada.

Esse predomínio viera da sociedade colonial, dispersa, incoesa e de estrutura aristocrática, que criara uma forma de organização social contrária à politização. A emancipação política do país não modificaria fundamentalmente essa estrutura. A sua classe política seria constituída pelas famílias que detinham a propriedade territorial e o monopólio de mando, tendo como seus representantes (embora dela distanciadas pelo pensamento, pela educação literária e pela cultura) os doutores, que agiam em defesa de seus interesses (por tradição, por sentimento, por interesse, e pelo instinto conservador de todo poder). Essa elite distante, que vivia com o pensamento fixado na Europa, cairia facilmente naquele idealismo utópico. A sua ação não conseguiu, porém, transformar a ordem econômica social do país, que resistiu, mesmo depois da abolição dos escravos e da República, a sociedade colonial guardava ainda, fora do litoral, os seus arcabouços mais ou menos resistentes, aqui ou ali.

Mas, por outro lado, distancia-se da realidade, avançando o sinal, para recolher, na doutrina e na legislação de povos mais adiantados, concepções e disposições próprias do grau de seu desenvolvimento. A despeito da diferença flagrante entre o meio europeu e o brasileiro, muitas construções jurídicas da Europa continental são introduzidas sem maior resistência. O legislador pátrio, desdenhoso das condições materiais de existência do país, pôde, com mais facilidade, romper, em certos pontos, com as tradições do passado modificando as linhas arquitetônicas de importantes institutos jurídicos. Não estando atado a uma tradição arraigada, difícil lhe não foi aproveitar-se da experiência de outros sistemas jurídicos e adotar teses avançadas da doutrina estrangeira, para acolher, afinal, certas conquistas interessantes da ciência jurídica.

As condições de vida do país, tão distantes daquelas em que tais construções se levantaram, reagiriam sobre o próprio pensamento dessa elite progressista e exerceriam marcada influência sobre as instituições e o modo por que o direito seria aplicado. Por mais forte que houvesse sido o seu entusiasmo pelo progresso da ciência jurídica na Europa, não foi possível escapar à influência do meio. Na elaboração do Código Civil, como, de resto, em sua aplicação, esse condicionamento revela-se de modo a se poder perceber nitidamente o particularismo a que dá lugar. As condições econômicas dos povos da América determinaram soluções diversas das que a Europa adotava ou, apesar da tendência, mostra que, no Brasil atual, a tradição européia de proteção ao vendedor do imóvel não tem sentido, em vista do rápido ritmo de desenvolvimento do país e dos imóveis.

No período de elaboração do Código Civil, o divórcio entre a elite letrada e a massa inculta perpassa inalterado. A aristocracia representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arcabouço econômico. Natural que o Código refletisse as aspirações dessa elite e se contivesse, do mesmo passo, no círculo da realidade subjacente que cristalizara costumes, convertendo-os em instituições jurídicas tradicionais. Devido a essa contensão, o Código Civil, sem embargo de ter aproveitado frutos da experiência jurídica de outros povos, não se liberta daquela preocupação com o círculo social da família, que o distingue, incorporando à disciplina das instituições, básicas, como a propriedade, a família, a herança e a produção (contrato de trabalho), a filosofia e os sentimentos da classe senhorial. Suas concepções a respeito dessas instituições transfundem-se tranqüilamente no Código. Não obstante, desenvolveu-se, à larga, a propensão da elite letrada para elaborar um Código Civil à sua imagem e semelhança, isto é, de acordo com a representação que, no seu idealismo, fazia da sociedade.

Finaliza Gomes (2003) dizendo que o Código Civil brasileiro teve, assim, um cunho teórico. Os primeiros códigos da América Latina, promulgados no décimo nono século, refletiam o ideal de justiça de uma classe dirigente, européia por sua origem e formação, constituindo um direito que pouco levava em conta as condições de vida, os sentimentos ou as necessidades das outras partes da população, mantidas em um estado de completa ou meia escravidão. O retardamento na organização do Código Civil brasileiro permitiu que esse divórcio entre o direito teórico e a prático não fosse tão profundo entre nós como foi em outras nações do continente. Mas, ainda assim, a alienação constituiu freqüente recurso do legislador para dotar o país de uma legislação que nada ficasse a dever aos códigos mais modernos. Em várias disposições, é mais uma expressão de idéias do que de realidades.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 23 de julho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - A estrutura social brasileira no período de elaboração

Ensina Orlando Gomes (2003) que o Código Civil é obra de homens da classe média, que o elaboraram na preocupação de dar ao país um sistema de normas de direito privado que correspondesse às aspirações de uma sociedade interessada em afirmar a excelência do regime capitalista de produção. Mas esse propósito encontrava obstáculos na estrutura agrária e não recebia estímulos de uma organização industrial a que se somasse o ímpeto libertário da burguesia mercantil. A classe média embora forcejasse por lhe imprimir um cunho liberal e progressista, estava presa aos interesses dos fazendeiros que, embora coincidentes imediatamente com os da burguesia, não toleravam certas ousadias. O pensamento dominante na elaboração do Código Civil sofreu a influência desse desajustamento interno entre os interesses da classe dominante.

Prossegue o autor que, no tempo em que Clóvis Bevilaqua apresentou o projeto de Código Civil, o país era uma nação embrionária, cuja indústria mais importante consistia em uma lavoura rudimentar, extensiva, servida por dois milhões de escravos e, àquele tempo, abolida a escravatura, isto é, na última década do século XIX, por trabalhadores nacionais e algumas dezenas de milhares de colonos de procedência européia; a população em geral pobre, na sua maioria.

A estrutura agrária mantinha no país o sistema colonial. A vida econômica dependia do binômio exportação de matérias-primas e gêneros e importação de artigos fabricados. Predominavam os interesses dos fazendeiros e dos comerciantes, aqueles produzindo para o mercado internacional e estes importando para o comércio interno. Eram coincidentes. Não havia descontentamentos que suscitassem grandes agitações sociais. Os proprietários de terra necessitavam de bens que o país só podia obter mediante importação. Para essa função, uma burguesia mercantil desenvolveu-se, estabelecendo-se em pontos estratégicos do litoral. A preservação e a defesa desses estavam confiadas a uma classe média escassa que exercia cargos burocráticos de um país que se organizava.

Para a organização social do país, a racionalização dos interesses dos fazendeiros e comerciantes se processou por intermédio dessa classe, que os matizou com os pigmentos de seus preconceitos. Ajustada à situação econômico-social do país, pelo apoio que recebia da burguesia rural e mercantil, transfundiu na ordem jurídica uma legislação inspirada no direito estrangeiro, que, embora estivesse, muitas vezes, acima da realidade nacional, correspondia aos interesses a cuja guarda e desenvolvimento se devotava.

Nas cidades, em estabelecimentos comerciais de mercadorias importadas, a burguesia mercantil imitava nos hábitos sociais, no estilo de vida, e na própria institucionalização das idéias, as camadas superiores de povos de estrutura econômica e social muito mais desenvolvida, dando uma falsa impressão de progresso cultural. Aquela aparência de civilização, brilhantemente ostentada em meia dúzia de capitais contrasta de modo chocante com o atraso geral, em que permaneciam, principalmente, as populações do campo. Como a economia do país estava baseada na exploração da terra por processos primários e dependia do mercado externo, a renda dos fazendeiros só poderia ser obtida mediante à exploração do trabalhador rural em escala. O comerciante, tanto importador como exportador, tinha interesse vital na conservação desse sistema. Os grupos dominantes da classe dirigente - a burguesia agrária e a burguesia mercantil - mantinham o país subdesenvolvido, porque essa era a condição de sobrevivência dos seus privilégios econômicos e da sua ascendência social no meio em que vivia.

Por esse interesse fundamental, entende Gomes (2003), que explicam suas inclinações ideológicas. Para defendê-lo encontram no liberalismo econômico sua mais adequada racionalização. Os expoentes da intelectualidade brasileira de então, situados na classe média, inspiravam-se no pensamento e nas formas de povos mais adiantados, transplantando ao nosso solo instituições estrangeiras, que nessas começavam a murchar. O desenvolvimento das metrópoles, então dependente da atividade econômica da burguesia mercantil, interessava fundamentalmente às classes médias, e, de modo particular, à elite intelectual.

No plano político, o controle dos dois setores mais importantes da burguesia, especial e notadamente da burguesia rural, se exercia sob a forma da política de clientela eleitoral. Os grandes proprietários rurais nomeavam os legisladores e governadores, assegurando, desse modo, a defesa de seus interesses básicos. Nos quinze primeiros anos do século XX, o desenvolvimento do colonialismo atinge o seu maior grau, estimulado pelo incremento do comércio internacional e pela facilidade da mão-de-obra decorrente da imigração.

Nesse período de prosperidade, os quadros políticos do país se ampliam. As formas de organização econômica, política e social dos povos mais adiantados transplantadas para o país acomodam-se e se aclimatam, com as inevitáveis deformações. Enquanto a burguesia mercantil aspirava a um regime político jurídico que lhe assegurasse a mais ampla liberdade de ação, preconizada pela ortodoxia liberal, a burguesia agrária temia as conseqüências da aplicação ao pé da letra, dos princípios dessa filosofia como classe, de que a democratização de fundo liberal se faria ao preço do seu sacrifício. O regime representativo permitia ao proprietário da terra resguardar-se de investidas contra seus interesses fundamentais. Por outro lado, o sistema de franquias liberais aproveitava, tão-somente, a reduzido número, sendo estranho à grande maioria da população miserável e inculta.

Observa o autor que o crescimento da classe média, particularmente devido à urbanização prematura do país, foi provocado, não pela sua industrialização, mas pela expansão do comércio exportador dos produtos agrícolas. As capitais dos Estados marítimos mais desenvolvidos construíram os seus portos para o escoamento da produção e o recebimento de mercadorias estrangeiras, transformando-se em centros movimentados que reclamaram serviços públicos mais amplos e complexos. A República permitira a criação de Escolas Superiores, que logo se difundiram nesses centros, e o teor de vida nas cidades que procuravam imitar as metrópoles litorâneas atraía gente do interior, em regra filhos de fazendeiros ou pequenos negociantes. Cresceu, assim, rapidamente, nas principais cidades, uma pequena burguesia, sem condições de imediato amadurecimento, devido ao baixo nível de vida econômica.

A despeito de se ter apossado dos cargos públicos e das posições de comando, manteve-se subserviente aos interesses da burguesia, os quais passou a expressar em termos políticos adequados, até o momento em que o seu refugio se saturou. Nessa classe média, assim fixada, recrutavam-se os elementos aos quais se confiava o manejo da máquina política e burocrática do Estado. Não possuindo ideologia própria e vivendo em condições favoráveis, devido ao surto de prosperidade já assinalado, a classe média assumiu posição conservadora, procurando dar ao país uma organização social propícia à expansão das forças produtivas cujo ritmo de crescimento se acelerara devido aos fatores já apontados.

Nesse sentido, destaca Keila Grinberg (2001) que as relações patriarcais ainda imperavam no país, como bem o sabia Beviláqua. Diante desse quadro, ele entendia que o Código Civil brasileiro devia ser dotado de um caráter teórico, desvinculado mesmo de alguns aspectos da realidade do país. Dissociar o Código Civil dos próprios costumes da sociedade seria a única maneira de reformá-la, formulando regras abstratas que, ao serem aplicadas à sociedade brasileira, acabariam por forçar a sua transformação. Por isso que, para promover o progresso da nação, o Código Civil devia ser moderno e liberal, livre dos vícios que caracterizaram o passado brasileiro. Porém, o que sonhava Beviláqua e, de certa forma, havia sonhado Teixeira de Freitas, esbarrava em um problema. O direito brasileiro era profundamente marcado pelos costumes escravistas, patriarcais e católicos que formavam a sociedade brasileira.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 9 de julho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - Importância do anteprojeto de Teixeira de Freitas

Para se entender o sistema do Código Civil de 1916, reforça Andrei Pitten Velloso (2002), é imprescindível que se exponha, preliminarmente, a influência do pensamento de Teixeira de Freitas, pois a Consolidação das Leis Civis, elaborada em 1857, com base nas Ordenações Filipinas de 1602, alcançou até 1917, mais do que meio século, a autoridade de um verdadeiro Código Civil Brasileiro e o Código de 1916 incorporou, em larga medida, a noção de sistema formulada por Teixeira de Freitas.

Em vista do estado caótico da legislação, o governo imperial incumbiu a Teixeira de Freitas, em 15 de fevereiro de 1855, a consolidação das leis civis, com a obrigação de coligir e classificar toda a legislação pátria, inclusive a de Portugal, anterior à independência do Brasil. A natureza e a marcha da ingente tarefa foram bem compreendidas pelo jurisconsulto encarregado de realizá-la. Tratava-se, segundo Gomes (2003), de mostrar o último estado da legislação, reduzindo a proposições claras e sucintas as disposições em vigor, com citação, em nota correspondente, da lei que autorizava cada preceito, ou declaração do costume que estivesse estabelecido contra ou além do texto. O objetivo era a elaboração de trabalho preparatório da codificação. A obra excedeu a toda expectativa, constituindo marco decisivo na evolução do direito civil brasileiro. Por seu intermédio, o direito português conservou-se no Brasil. Foi resguardada, no possível, a continuidade da tradição jurídica do país, apesar de todas as conquistas do espírito inovador, e da influência, então inevitável, dos códigos e dos autores estrangeiros. A Consolidação das Leis Civis condensa os resultados da experiência jurídica lentamente acumulada sobre a carcaça débil das Ordenações.

Não fosse por essa condensação, por certo as Ordenações do Reino não teriam vivido até 1917. É verdade que o Código Civil a ela não se ateve. Mas a Consolidação facilitou a obra do codificador.

Prossegue Gomes (2003) que a influência de Teixeira de Freitas não se fez presente apenas através da construção magistral em que reuniu e sistematizou os elementos esparsos da desordenada e contraditória legislação emigrada. Exerceu-se também por meio do Esboço, que embora não houvesse sido aproveitado diretamente entre nós, como o foi em outras nações ibero-americanas, inspirou disposições do Código Civil, notadamente da parte geral, do direito das obrigações e de certos institutos da direito das coisas. Ao proceder à consolidação da caótica legislação esparsa, Teixeira de Freitas procurou criar um real sistema no Direito Civil pátrio, tarefa à qual se dedicou, inicialmente, quando da elaboração da Consolidação das Leis Civis, concluída em 1857, e, ulteriormente, do Esboço do Código Civil. Com tal intenção, Teixeira de Freitas buscou examinar as leis em seus próprios textos, sem influência de alheias opiniões, para conhecer a substância viva da Legislação. Essa concepção, de sistematizar um Direito Civil positivo pátrio, aplicada à Consolidação, significou uma vultosa mudança de rumo em relação à tradição do Bartolismo, que, primordialmente pela falta de critérios que sua aplicação denotava, tornava tormentosa a prática judiciária.

A concepção sistemática de Teixeira de Freitas, nos dizeres de Velloso (2002), não se confunde com a sistemática jusracionalista, tendo sofrido, ainda, nítida influência da pandectística, o que é revelado pelo fato de ter organizado a Consolidação com base na bipartição da codificação já empregada na obra dos pandectistas. Essa bipartição consistia na divisão estrutural da codificação em uma Parte Geral, à qual, na obra de Teixeira de Freitas, cabia tratar dos elementos constitutivos de todas as relações jurídicas, e uma Parte Especial, que regrava os direitos pessoais e reais. No Esboço, elaborou uma teoria dos fatos jurídicos que seria a base do sistema interno da consolidação, do Esboço e, ulteriormente, do Código Civil.

Teixeira de Freitas, pretendendo a unificação do Direito Privado, desinteressou-se do projeto, pois considerava arbitrária a divisão entre o direito civil e o comercial, propondo, na célebre carta dirigida a Martim Francisco, a elaboração de dois códigos: um Código Geral ou Código Geral de Direito Privado, propedêutico ao conjunto dos ramos jurídicos, e um Código Civil, que absorveria a legislação mercantil. Essa proposta denota a maior tentativa que se fez até hoje de se transpor para a lei uma teoria geral do direito de conversão em jurídico do jurídico-científico. A não aceitação de sua proposta importou com que fosse, em 1872, declarada a resolução de seu contrato para a elaboração do Código Civil.

Uma segunda razão, citada pelo professor Ricardo Marcelo Fonseca (2006) para o fracasso da tarefa de codificação encontra-se na decisão de Teixeira de Freitas de, fiel a seu espírito liberal, negar-se a estabelecer uma disciplina jurídica para a escravidão dos negros. Com efeito, escreveu ele claramente no seu Esboço o seguinte: "Sabe-se que nesse projeto prescindo da escravidão dos negros, reservada para um projeto especial da lei; mas não se creia que terei que considerar os escravos como cousas. Por muitas que sejam as restrições, ainda lhes fica aptidão para adquirir direitos; e tanto basta para que sejam pessoas". Assim, as convicções de Teixeira de Freitas entravam em choque com um dos pilares centrais dos interesses das elites, para quem um código civil não podia simplesmente ignorar as estruturas escravocratas da sociedade agrária brasileira, inviabilizando, assim, o sucesso de seu projeto. Outras tentativas de codificação da legislação civil (muito menos célebres, contudo) foram ainda tentadas no Brasil imperial: a de Nabuco de Araújo (1872) e a de Felício dos Santos (1881) cujos projetos, que muito deviam ao Esboço de Teixeira de Freitas, acabaram barradas quer pela rejeição do Ministério da Justiça e do parlamento, quer pelo final do regime imperial em 1889.

Embora não tenha atuado diretamente na elaboração do Código de 1916, suas influências sobre este são significativas. Como refere Pontes de Miranda (1981), Clóvis Beviláqua elaborou, em 1899, o Código Civil de 1916 aproveitando, primordialmente, os projetos de Teixeira de Freitas, de A. Coelho Rodrigues e de Felício dos Santos, sendo que a presença criativa de Teixeira de Freitas na codificação de 1916 foi mais acentuada do que a do próprio Clóvis Beviláqua. Cita ainda o autor que, das aproximadamente 1.929 fontes do Código Civil, ao direito anterior pertencem 479, à doutrina já vigente antes do Código Civil, 272, e ao Esboço de Teixeira de Freitas, 189. Isso quer dizer que, em tudo que se alterou, foi o Esboço a fonte principal. A influência do pensamento de Teixeira de Freitas estende-se até o Código Civil de 2002, primordialmente no que tange à sua concepção de sistema, à unificação do direito das obrigações e à concretude.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 25 de junho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - Características substanciais e formais

Luís Fernando Lopes Pereira (2006), comentando sobre as bases do absolutismo jurídico, ensina que da lógica do jusnaturalismo, que se consolida com iluminismo do século XVIII, surgiria a pretensão de se definir procedimentos intelectuais capazes de deduzir dos axiomas identificados sobre a natureza humana outras normas. Prossegue que essa visão mecanicista se concentra em explicações no nível temporal, visível, físico de onde se retirariam leis cósmicas que fundamentariam a codificação do século XIX. Os vínculos sociais, portanto, passam a ser vistos como fatos artificiais da vontade, donde resulta que na base do direito está a natureza individual, a vontade, fundamento da teoria dos direitos subjetivos vistos como poder de vontade garantido a certo sujeito pelo direito; tais direitos atribuídos seriam anteriores à ordem jurídica, pois viriam da condição natural do homem que, portanto, pode criar direitos a partir de atos de vontade ilimitados, os negócios jurídicos. O modelo individualista é calcado no homem de negócios (o selfmade man). Essa seria a base da lógica contratualista que se consolida exatamente no contexto histórico de desenvolvimento do capitalismo mercantil, quando a burguesia exigia um direito claro e simples, abstrato e sistemático que lhe desse segurança, estabilidade e certeza. Daí toda a atividade jurídica moderna ser ao contrato vinculada (pacta sunt servanda).

O Código Civil de 1916, embora nascido no século XX, reflete bem a lógica acima citada. Foi elaborado, na visão de Velloso (2002), nos moldes das codificações oitocentistas, como um sistema normativo total, completo e acabado, com a pretensão à plenitude legislativa, à normalização de todos os fatos da vida civil com a exclusão de qualquer outro diploma legislativo. Foi concebido, também, como um sistema jurídico revestido de completude lógica, hábil a, por seus preceitos abstratos, ser aplicado a todas as situações da vida real. Embora reconhecida a existência de lacunas, previu-se, na Introdução, critérios para a solução dos casos omissos, de modo a atender ao postulado da plenitude da codificação. Concretizou-se o mito jusracionalista da completude legislativa e lógica, o qual, conjugado com a técnica legislativa da fattispecie, leva à prevalência do valor da segurança em detrimento da justiça material, o que é expresso no pensamento jusracionalista de Leibniz, que afirma ser preferível que alguns sofram injustiças do que alimentar o mal coletivo de um direito incerto.

A influência do caráter patrimonialista e individualista das codificações oitocentistas, alicerçadas na filosofia iluminista, levou a que Clóvis Beviláqua elaborasse o Código Civil com suporte na igualdade abstrata dos sujeitos de direito. Pessoa é o ser a que se atribuem direitos e obrigações. Equivale, assim, a sujeito de direitos. Personalidade é a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e contrair obrigações.

Não é sem razão o dizer de Jussara Meirelles (1998) no sentido de que o Código Civil de 1916 é o estatuto patrimonial do homem. Ao Código não interessa os anseios da pessoa humana - sua dignidade -, pois é voltado quase que exclusivamente à proteção do patrimônio que a pessoa carrega, e, via de conseqüência, esta só se vê protegida na medida em que pretende movimentar seus bens. Aí reside o preconceito do Código, pois olvida da pessoa que não possui patrimônio, sendo, pois, relegada a segundo plano.

Com a tímida utilização de cláusulas gerais, de princípios e de conceitos jurídicos indeterminados, os dispositivos do código são elaborados predominantemente segundo a técnica legislativa casuística. A técnica casuística, típica da codificação oitocentista, consiste na formulação das normas como fattispecie, na elaboração dos artigos segundo a lógica clássica do suporte fático abstrato e dos efeitos respectivos, ou seja, de hipóteses abstratas específicas e circunstanciadas às quais são atribuídas conseqüências jurídicas pré-estabelecidas com precisão, abrindo diminuto espaço à consideração das peculiaridades do caso concreto, à situação fática em sua especificidade e, de conseguinte, à atividade de graduação judicial. Por meio da técnica casuística o legislador cria um repertório de figuras e disciplinas típicas, atribuindo aos juízes uma atividade passiva de subsunção, segundo uma lógica formal, levando, pois, à incomunicabilidade entre o código e a situação regulada.

Ao caráter fechado do sistema interno decorrente do amplo emprego da técnica casuística consociou-se, inicialmente, um sistema externo fechado, dificultando sobremaneira a ocorrência de mutações e a atividade judicial criativa, o que teve como consectários uma rigorosa incomunicabilidade com a realidade e, de conseguinte, a inadequação do código para a normatização da sociedade contemporânea, dinâmica e cada vez mais complexa e diferenciada.

Sua viabilidade era decorrente da estabilidade da estrutura social e do abstencionismo estatal na esfera econômica, característicos dos modelos liberais burgueses. Não havia, assim, a necessidade de conformação do sistema jurídico civil a rápidas e significativas alterações políticas e sociais, ensejando a manutenção de uma codificação rígida, sem a eclosão de uma legiferação especial significativa; fenômeno que, no entanto, foi verificado no curso da vigência do Código Civil de 1916.

Refere ser a garantia da autonomia privada como livre escolha de fins uma das características fundamentais do mundo da segurança, do mundo dos códigos, que traduzem os valores do liberalismo oitocentista. Prezava-se sobremaneira a liberdade civil, a vida como livre escolha dos fins, relegados aos cálculos de conveniência e à incontrolável valoração dos indivíduos. Escolhendo os fins a serem perseguidos, esses assumiam a responsabilidade da iniciativa, sendo a assunção dos riscos justamente a contrapartida dessa liberdade. Ao Direito era reservada a função de fornecer os instrumentos necessários ao pleno exercício da autonomia privada, não devendo se imiscuir na ordem privada. A segurança era atinente às regras, abstratas e gerais, do jogo, não à obtenção dos fins, motivo da não-consagração, como regra, na codificação oitocentista e no nosso código de 1916, de formas de revisão contratual.

A pretensão à imutabilidade dos institutos básicos do Código - o direito de propriedade, a liberdade contratual e a sucessão concebidos de forma absoluta - e a exigência de estabilidade estavam nas raízes da codificação, sendo ignorada a idéia de um controle sobre os fins privados, em consonância com a ética da liberdade kantiana que permeava todo o sistema. No entanto, como já referido, a realidade político-social mudou sensivelmente logo após o início da vigência do código de 1916, a demandar uma intervenção estatal que ia de encontro ao espírito deste.

Assinala ainda Velloso (2002) sobre codificação de 1916 seus traços característicos, dentre os quais sobressai a adoção da bipartição da codificação em Parte Geral e Parte Especial. O código apresenta uma Parte Introdutória complexa, composta, originariamente, pela Lei de Introdução, pela Parte Geral e por partes gerais de cada matéria, consubstanciadas por disposições gerais que estão inseridas nos dispositivos inaugurais de diversos livros, títulos e capítulos do Código, evidenciando, assim, o forte espírito analítico e sistematizador daqueles que, mediata ou imediatamente, elaboraram essa codificação.

Assim como as Partes Gerais da Consolidação e do Esboço de Teixeira de Freitas, está inserida a Parte Geral do Código Civil de 1916 no sistema de noções de direito civil propriamente ditas, veiculando disposições gerais de direito civil; desempenha, desse modo, uma função cientificamente fundante de todo o sistema.

O sistema consagrado na Parte Geral do Código Civil de 1916 é assentado numa Teoria do Ato Jurídico, com a definição dos atos lícitos, ilícitos e dos fatos juridicamente relevantes, em regras com forte inspiração na doutrina pandectista alemã, consistindo, por se revestir de uma lógica interna imanente, num verdadeiro sistema interno. Caracteriza-se por ser central, permitindo a recondução dos casos particulares, via o raciocínio lógico-subsuntivo, às categorias mais gerais que estão postas no seu topo, prontas para permitir a dedução escalonada das espécies.

A abstração, que permeia toda a codificação, também está presente na Parte Geral, carente de dispositivos, tais como as cláusulas gerais, hábeis a viabilizar a consideração da situação fática ou a atividade judicial criativa.

O Código Civil de 1916 é permeado por uma eticidade formal, embasada na ética da liberdade e do dever kantiana, que foi o pano de fundo da pandectística do século XIX. Essa eticidade é fundada na igualdade formal, desconsiderando as reais condições sociais dos indivíduos concretos, que eram indiferentes para a ordem jurídica liberal. O conceito da igualdade formal e o ideal de uma legislação geral clara e simples levaram à adoção da técnica do sujeito de direito único, abstrato, desprovido de qualquer atributo social diferenciador; conceito, ideal e técnica que se pressupõem um ao outro e se condicionam reciprocamente.

Tais aspectos, como já aludido, encontram-se presentes de forma incontestável no Código Beviláqua. A pessoa era tida como mero sujeito de direitos; a personalidade correspondia à capacidade de direito; e a técnica legislativa da fattispecie servia à igualdade formal, mas não à material. A eticidade formal denotava o caráter individualista do Código de 1916, o qual é evidenciado, dentre outros aspectos, pelo embasamento do regime contratual no princípio da autonomia da vontade considerada como livre escolha de fins, pela irreversibilidade dos vínculos contratuais, pela não-subordinação do direito de propriedade a fins sociais.

O individualismo consistiu um elemento consciente no trabalho de Clovis Beviláqua. A inserção no código de preceitos consagradores das demandas sociais foi considerada inadequada por Beviláqua, em virtude de não estarem, à época, devidamente assentadas e reconhecidas. Concebeu, assim, que não deveria haver uma intervenção funesta na economia da vida social, pois as codificações sempre foram mais trabalho de depuração, de condensação, de enfeixamento, de classificação, de metodização, do que aventurosos trânsitos por sendas mal desbravadas. Quando da elaboração e promulgação do Código Civil de 1916, predominava o individualismo, concepção político-filosófica vigorante após a Revolução Francesa, consolidada com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e com base na qual foi promulgado o Código Napoleônico. As características e as bases axiológicas da sociedade da qual o Código Civil de 1916 era um reflexo estavam, à época da elaboração deste, em nítido declínio, o que embasa a assertiva de que quando o jurisconsulto elaborou o seu monumental Projeto de Código Civil, estava, talvez sem o perceber, no crepúsculo de uma civilização e de uma cultura. Assim, a atitude de Clóvis Beviláqua foi eminentemente conservadora, pois ele codificou para uma sociedade patriarcal que ainda não tinha nenhuma experiência da época industrial; ele legislou para um Brasil agrícola e patriarcal.

Na seara do Direito de Família, o caráter patriarcal surgia como base axiológica marcante do Código Beviláqua, expressa primordialmente pela posição de domínio que as figuras do pai e do marido exerciam no âmbito do direito de família. A família, por sua vez, era matrimonializada, assentada no instituto do casamento, ao qual era associada a legitimidade dos filhos, com a classificação dos filhos em legítimos, naturais, espúrios e adulterinos.

Verifica-se em Luiz Edson Fachin (2003) que, sem embargo, o sistema de família no Código de 1916, ainda que tenha resistido por décadas, foi, aos poucos, suplantado. O sistema foi transformado quando os valores da sociedade já eram outros. Os valores que inspiravam a regulação jurídica do patrimônio e que foram abrigados pelo Código, não raro serviram como um escudo a essas transformações. Os fatos vão se impondo perante o sistema codificado que recolhe o princípio da igualdade. A partir de um reconhecimento já efetivado, a igualdade era confinada a uma consideração formal e abstrata que levava em conta categorias abstratas, deixando à margem sua consideração concreta. A igualdade passava a ser vista como um conceito e, sendo assim, era uma categoria distanciada da realidade. No direito que inspira o sistema, emerge a idéia hoje pacífica, mas que inicialmente possuía ares de atentado de que os desiguais devem ser desigualmente tratados para se tornarem iguais. O discurso é o de reconhecimento de desigualdades. A igualdade material sugere o reconhecimento das diferenças.

Ultrapassada também se encontra a fixação rígida de espaços normativos. Há searas novas, ambivalentes, nelas se inserindo interesses de dupla face, a exemplo da proteção à criança e ao adolescente, bem como no campo das relações de consumo que recaem sobre serviços bancários ou de entidades de crédito. Constata-se, pois, uma mudança de paradigmas. Havia um código do contrato, como um código do patrimônio, pronto e acabado no Código Civil. O contrato estava confinado ao dogma da vontade, hoje se submete a algumas interrogações sobre a amplitude da possibilidade da intervenção judicial, na autonomia dos contratos e da ética contratual. Onde se dizia que o proprietário tem o direito de dispor, de fruir e de utilizar, a legislação e jurisprudência posteriores vão dizer que tem o direito de dispor nos limites da lei, sendo que esta, por sua vez, se submete a outro princípio que gerou uma funcionalização desses direitos, uma operação de redução da amplitude dos poderes do titular privado em face dos princípios constitucionais.

No Direito Civil, as definições, de um modo geral, acabam sendo, assim, excludentes. Fornecem um catálogo legal no qual a codificação pode desempenhar esse papel de exclusão. O sujeito hipoteticamente livre e senhor de sua circunstância goza de formal dignidade jurídica. Sob seu jugo estão o objeto, as coisas e a própria Natureza. É nessa percepção que foram excluídos todos os que não tiveram acesso a tal dignidade jurídica, bem como o "conjunto das condições da própria natureza humana, suas restrições globais de renascimento ou de extinção". A crise não se dá apenas no modelo do pensamento jurídico, nem é apenas um incidente no legado teórico do destaque das individualidades. A realidade contemporânea arquivou o projeto do conceitualismo. Se mesmo assim o século XIX continua em moda, a rejeição a essa fundamentação do direito pode alcançar uma afirmação da qual a consciência crítica não pode fugir, não há sistema neutro.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 11 de junho de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - A Influência do Code, do BGB e da tradição romanista

Ressalta Clóvis do Couto e Silva (1997) que a maioria dos Códigos latino-americanos sofreu profunda influência do Direito francês e que não se pode dizer que tenha sucedido o mesmo com o Direito brasileiro. A razão principal está no fato de terem vigorado no país as Ordenações Filipinas até a entrada em vigor do Código Civil brasileiro, em 1916 - portanto, por mais 300 anos. As noções de propriedade, família e contratos são, ainda, as da última fase do Direito Comum, pois o Código Civil germânico publicado em 1900 não foi considerado durante o período de tramitação do Código Civil, e poderia ter sido, pois ele somente foi publicado em 1916. As alterações verificadas entre 1899 e 1915 foram, em sua maioria, apenas formais, resultantes principalmente das críticas de Rui Barbosa.

Talvez a melhor metodologia para se denotar as diversas influências na codificação de 1916 consista na análise das principais concepções acolhidas pelos grandes juristas brasileiros que trabalharam em projetos dos quais resultou o Código Beviláqua.

Para se entender o sistema do Código Civil de 1916 é imprescindível que se exponha, preliminarmente, a influência do pensamento de Teixeira de Freitas. Embora não tenha atuado diretamente na elaboração do Código de 1916, suas influências sobre este são significativas, como já exposto em tópico anterior. Por outro lado, juristas que tiveram destacado papel na elaboração e crítica do projeto do Código Civil de 1916, tais como Tobias Barreto, Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa, são expoentes da denominada Escola Alemã de Recife, que, fundada pelo primeiro, difundiu a ciência jurídica alemã no país, cujos juristas eram acostumados a uma orientação até então quase que exclusivamente francesa. Os sistemas de Savigny e dos pandectistas exerceram uma significativa influência no pensamento de Clóvis Beviláqua.

Acrescenta Almiro do Couto e Silva (2003) que os Códigos mais recentes, como é o caso do Código Civil brasileiro, foram tributários do gigantesco esforço de análise e sistematização empreendido pela pandectística alemã do século XIX, que, trabalhando de modo especial sobre o direito romano, acentuou consideravelmente o aspecto da racionalidade de suas normas. O cientificismo jurídico foi o método de que se serviu a pandectística, que se propunha a organizar e articular toda a matéria jurídica num sistema completo, limado e polido outra vez pela razão, e tão densamente fechado que impossibilitasse o juiz, ele próprio formado nessa ciência jurídica, de rebelar-se contra a sua lógica interna.

Para o autor, o direito romano consiste numa experiência, como direito na nação romana, de aproximadamente mil anos, e que após o ocaso do Império Romano do ocidente, ele sobrevive ainda, embora em forma vulgar, decadente, degradado e corrompido, como direito dos povos bárbaros que dominam a Europa e, igualmente, no direito bizantino. No século XII, com Irnério e a Escola de Bolonha, é ele redescoberto e reestudado, para ser depois, recebido como direito comum, de caráter subsidiário, na maior parte dos países europeus, formando, com a filosofia grega e a religião cristã, a base de cultura da assim chamada civilização ocidental. Houve, portanto, vários direitos romanos.

O direito romano chegou ao nosso Código Civil, sobretudo, pela obra da codificação justinianeia, filtrada pela experiência jurídica portuguesa, na qual, quase desde as suas origens, exerceu importantíssima função como direito subsidiário, ao lado do direito canônico. Levará, porém, algum tempo até que o direito português passe a beber diretamente nas fontes romanas. A estas tinha acesso, apenas, o reduzido número das pessoas que liam latim e que haviam tido a ocasião de estudar em universidades estrangeiras ou na recém criada universidade portuguesa. Os demais, quando aplicados aos misteres da justiça ou da administração do reino, estabeleciam contato com o direito romano ou com o direito canônico mediante textos que só indiretamente os espelhavam, como sucedia com as coletâneas jurídicas castelhanas.

Com o andar do tempo cresce o número dos interessados em conhecer o direito romano nos seus próprios mananciais. Com a promulgação das Ordenações Afonsinas, em 1446 ou 1447, declara da prevalência do direito português sobre o direito subsidiário. Esse estado de coisas perdura nas Ordenações Manuelinas, do início do século XVI e nas Ordenações Filipinas, do começo do século XVII (1603) que tornam a afirmar a preeminência das fontes imediatas do Direito, consistentes nas leis nacionais, estilos da corte e costumes do Reino sobre o direito subsidiário. Na hipótese de o direito romano e o direito canônico não terem solução para o caso concreto, dever-se-ia recorrer à Glosa Magna de Acúrsio ou à opinião de Bártolo.

Almiro (2003) permite a interpretação o Germanismo num sentido mais largo, abrangendo as criações do pensamento jurídico alemão, posteriores à recepção, que foram acolhidas na nossa codificação, por inteiro ou modificadas ou que a ela serviram de inspiração. Em tal perspectiva, a investigação dos traços deixados no Código Civil de 1916 terá necessariamente de considerar a contribuição romanista da ciência jurídica alemã, que começa com Savigny, e que depois se irá desenvolver notavelmente com a pandectística, na qual brilha singularmente a obra de Windscheid, culminando com o BGD (Bürgerliches Gesetzbuch), concluído em 1896, mas que entrou em vigência em 1900. Dizendo de outro modo, por germanismo, nesse sentido, não se considerará a matéria sobre a qual trabalhou a ciência jurídica alemã (matéria predominantemente romana), mas apenas e exclusivamente essa ciência jurídica.

Quem se debruçar sobre a obra de Teixeira de Freitas ou dos grandes juristas brasileiros da fase imediatamente anterior à da elaboração do nosso Código Civil, como o próprio Clóvis Beviláqua, logo perceberá a intimidade que tinham esses autores com a obra dos mais célebres juristas germânicos do seu tempo. Deve-se dizer, porém, a bem da verdade, que essa intimidade se estendia também aos juristas eminentes, de expressão francesa ou italiana, para não falar nos portugueses. De certa maneira, repetia-se, assim, num plano mais elevado, em que os exageros eram eliminados por critérios críticos bem mais estritos, o que acontecia nas práticas forenses, onde os advogados, no afã de convencerem os juizes, invocavam farta doutrina estrangeira, reiterando uma praxe que se consolidara desde a Lei da Boa Razão. É oportuno que se saliente, no entanto, que a literatura jurídica alemã do século XIX qualitativamente sobrelevava a todas as outras, contrabalançando, poderosamente, a influência que o Código Civil Francês exerceu sobre a legislação de outros povos.

Savigny, os pandectistas e seus sucessores deram origem a uma doutrina que combinou pela primeira vez os métodos históricos com os de uma dogmática sistemática e elaborou os conceitos jurídicos e os princípios gerais com um grau de clareza e de refinamento que anteriormente nunca tinha sido atingido. Foram os alemães, sem sombra de dúvida, os pais da ciência jurídica moderna, que encontra seu coroamento no BGB. Comparada essa monumental obra legislativa com as primeiras codificações do século XIX, de imediato se destaca a superior qualidade técnica do BGB. O desenvolvimento científico do Direito, ocorrido na Alemanha, no curso do século XIX, bem como as modificações culturais, econômicas e políticas por que passou o mundo nesse mesmo período de tempo, envelheceram e desgastaram, prematura e severamente, o Código Civil francês. Muito embora fosse ele a expressão mais alta do jusnaturalismo racionalista, elaborado, portanto, e posto em vigor com a pretensão de haver cristalizado uma ordem jurídica abstrata e atemporal, que deveria servir a todos os povos, motivo pelo qual intérpretes e aplicadores estavam proibidos de desnaturá-los, muito cedo se verificou que ele não representava o fim da história jurídica. E quem se incumbirá de mostrar isso será, precisamente, a Escola Histórica, em todos os seus desdobramentos, e o novo humanismo que a caracteriza, em poucas palavras, a ciência jurídica alemã do século XIX.

Ainda segundo Almiro (2003), ao efetuar o cotejo entre o BGB e aqueles outros códigos, observa-se que estes não haviam estabelecido regras sobre as pessoas jurídicas (o que foi objeto de meditação pela doutrina alemã); a fundação lhes é desconhecida, do mesmo modo como a noção de atos jurídicos e de suas diferentes categorias; seu tratamento da nulidade dos atos carece de precisão; eles não contêm normas sobre a conclusão dos contratos, a representação, a estipulação em favor de terceiros, a cessão de crédito e a assunção de dívida; a causa e o ato abstrato são representados desde então (desde o BGB) sob uma nova luz; do mesmo modo como o enriquecimento sem causa e a posse.

Não pode causar surpresa que muitas dessas imperfeições apontadas no Código Civil francês (e o mesmo se poderá dizer de outros códigos que receberam sua direta influência) estejam ausentes no Código Civil de 1916, como também certamente não espantará que nele tenham sido acolhidos progressos técnicos revelados ou introduzidos pela ciência jurídica alemã, não só em razão da sua excelência, mas também porque a chamada Escola do Recife, sob a liderança de Tobias Barreto, dera considerável importância e prestigio à cultura germânica no campo do Direito. Cabe lembrar, nessa ordem de considerações, que Clóvis Beviláqua era professor da Faculdade de Direito do Recife.

Almiro (2003) conclui que seria perfeitamente natural, como o foi, que, em razão da sua maior proximidade histórica, a ciência jurídica alemã, afinal cristalizada no BGB, tivesse sobre o Código Civil Brasileiro uma influência em muitos aspectos mais expressiva que a do Código de Napoleão. O Código Civil Alemão e o brasileiro, diferentemente, propunham-se a ser o coroamento e a conclusão de um prolongada fase de vigência do ius commune, muito mais do que instrumentos revolucionários de mudança da sociedade. Apesar de que a preocupação com a segurança jurídica dos indivíduos estivesse evidentemente entre as motivações principais de ambas as codificações, pois, é óbvio que a maior definição e clareza da ordem jurídica, operada pela codificação, teria essa conseqüência imediata, faltava-lhes a missão propedêutica de educar o povo em um novo credo.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 28 de maio de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - CONCLUSÃO

Neste trabalho, discorrendo sobre as características e a elaboração do Código Civil de 1916, pode-se concluir que foi um código afinado com a ciência jurídica do seu tempo, não desconheceu da ciência jurídica alemã (muito superior à sua época a de qualquer outro país), e se utilizou da tradição luso-brasileira, dos ensinamentos do direito comum e dos empréstimos do Code Civil (talvez muito mais recortados do direito romano com a expressão que os franceses lhe deram). Essa posição de equilíbrio e de relativa independência que guardou o Código Civil brasileiro, não apenas com respeito ao BGB, mas também com o napoleônico, é que o ergue à condição de ser um dos mais originais dessa segunda geração de códigos.

A acelerada mudança vista pela sociedade contemporânea requer a aplicação de normas que ultrapassam disposições contidas num único código. A resolução de conflitos deve ser feita mediante leis especiais, visto que mais capazes de vencer as novas contingências que se impõem. Um código, hoje, significa norma de aplicação supletiva e subsidiária. A persistência em adotá-lo como fonte precípua de Direito acarreta, como já ponderava Savigny, a cristalização do Direito. O ordenamento do século XXI há que ser voltado à defesa efetiva da pessoa, não mais à defesa da burguesia e à institucionalização da ordem privada em que o Estado não pode intervir. Outrossim, forçoso a readequação dos institutos tradicionais da sociedade civil - fundados eminentemente no patrimônio -, na tentativa de despatrimonialização do direito privado, constituindo o primeiro passo, no Brasil, a Constituição de 1988, em cujo conteúdo observa-se a valorização da pessoa humana por si própria, em sua dimensão ontológica.

Recolocando-se o sujeito no cerne das relações jurídicas, há duas conclusões necessárias: a valoração ética dos comportamentos e a impossibilidade de se estabelecer uma disciplina jurídica fechada para essa valoração. Percebe-se, então, por que o Direito, hoje, se abre para uma retomada da boa-fé. E essa é a perspectiva que se projeta com a crise do sistema clássico. Para afastar a influência dos interesses sociais, o sistema abandonou as valorações, higienizando-se, dando função asséptica à norma jurídica. Os dias de hoje são a demonstração inequívoca de que os poros do sistema jurídico estão abertos, que os diques construídos pelo sistema clássico, para barrar este tipo de influências recolhidas dos fatos, estão ruindo. A partir dessa ruína e, se há, efetivamente, uma ruína, principiam outras interrogações. Um script sem pré-ordenação se constituiu e se dissolveu, reconstruindo-se, ao saber do transcurso, entre o hoje e o depois, na interlocução que não se auto-refere, e do conhecimento que se abre feito software em permanente instalação.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 14 de maio de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - REFERÊNCIAS

COUTO E SILVA, Almiro do. Romanismo e germanismo no Código Civil brasileiro. In: Cadernos de Direito Público - Almiro do Couto e Silva. Porto Alegre: Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul nº 57 Supl., 2003. Disponível em: . Acesso em 28 julho 2008.

COUTO E SILVA, Clóvis do. Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 11-31.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar; 2003, Título II, cap. I e III.

FONSECA, Ricardo Marcelo. A cultura jurídica brasileira e a questão da codificação civil no século XIX. In: Revista da faculdade de Direito UFPR, nº 44, 2006. Disponível em < http: // calvados.c3sl.ufpr.br / ojs2 / index.php / direito / article / viewFile / 9415/6507 >. Acesso em 28 julho 2008.

GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. O "Ser" e o "Ter" na codificação. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio Janeiro: Renovar, 1998, p. 87-111.

MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do Direito Civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

PEREIRA, Luis Fernando Lopes. Razão (crítica) moderna e Direito: por uma mentalidade jurídica emancipatória. In: Direito, Sociobiodiversidade e soberania da Amazônia. Anais do XV Congresso Nacional CONPEDI. Manaus: UEA, 2006.

VELLOSO, Andrei Pitten. Mutações paradigmáticas da Codificação: do Código Civil de 1916 ao Código Civil de 2002. Porto Alegre : Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul nº 57, 2004. Disponível em: . Acesso em 28 julho 2008.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 3 de abril de 2008

RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. p. 3-17.

RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 3-17
Estrutura: Fundamentos do modelo de direito privado brasileiro. Do sistema codificado aos estatutos especiais. Da dicotomia direito público-direito privado à constitucionalização do direito civil. A superação do sistema do direito privado clássico. Abandono da neutralidade e leitura interdisciplinar. Passagem da autonomia privada ao interesse social.

Resumo:

Fundamentos do modelo de direito privado brasileiro

Buscar o papel e função dos códigos civis na vida das sociedades dos séculos XIX e XX conduz à vinculação entre as codificações e o modelo liberal de organização do direito, uma vez que estas espelham os princípios e valores consagrados por este paradigma, de onde a crise que ora se delineia revelar a superação destes conjuntos de normas, organizados num sistema racional, pretendendo regular toda a vida da sociedade privada como modo de ver o fenômeno jurídico.

Do sistema codificado aos estatutos especiais

Preocupado em romper com o regime absolutista e seus privilégios de classe, eliminando, ao mesmo tempo, o que foi qualificado como o caráter dispersivo e inseguro do direito do medievo, pelas peculiaridades de sua conotação pluralista, o liberalismo jurídico consagrou, no século XIX, a completude e unicidade direito, que passou a ter como fonte única o Estado, poder ideologicamente emanado do povo a neutralidade das normas com relação a seu conteúdo, e a concepção do homem como sujeito abstrato, como os postulados fundamentais do Estado de Direito.

Na sumarização de Pietro BARCELLONA, o Estado de direito é o Estado da legalidade e da liberdade, dos indivíduos livres e iguais: livres para agir e iguais diante de uma lei igual para todos porque geral e abstrata.

Estas características levaram à redação do conjunto de normas organizado em codificação que, segundo se passou a sustentar, seria suficiente para regular toda a vida da sociedade civil, como lei maior da comunidade, de forma igualitária.

A igualdade, fundada na idéia abstrata de pessoa, partindo de um pressuposto meramente formal, baseado na autonomia da vontade, e na iniciativa privada, no entanto, veio acompanhada de um paradoxo, que traduz uma conseqüência do modelo liberal-burguês adotado: a prevalência dos valores relativos à apropriação de bens sobre o ser, impedindo a efetiva valorização da dignidade humana, o respeito à justiça distributiva e à igualdade material ou substancial.

Foi este paradigma, inaugurado com a codificação francesa, o adotado pelo Código Civil brasileiro de 1916. No texto francês, como no direito pátrio, a autoridade do Estado se conciliava com a soberania do indivíduo, com sua autonomia, decorrente do contrato social, que, no domínio econômico e dos contratos mantinha o Estado numa neutralidade estática, ignorando as desigualdades econômicas, aplicando o regime de igualdade de todos, fortes e fracos, perante a lei, cuja conseqüência foi fazer com que a vontade dos fortes passasse a dominar e oprimir, acabando por tornar-se um regime de privilégio dos fortes, baseado numa ética individualista.

Nos códigos civis típicos do século XIX, o ser humano, personificado como sujeito de direito, titular de direitos virtuais, abstratos, no gozo de sua capacidade de fato e autonomia de vontade tem a capacidade de se obrigar. No entanto, considerando-se o modelo de produção capitalista vigente, o exercício de direitos ficou vinculado à apropriação de bens, restando, à maioria da população, como direito único, o de obrigar-se, vendendo sua força de trabalho.

Qual seja: preocupado com eliminar as discriminações pessoais características do medievo e do período do absolutismo monárquico, o Estado de Direito liberal ignorou as desigualdades econômicas e sociais, considerando todos os indivíduos formalmente iguais perante a lei, parificação esta que só acentuou a concentração do poder econômico capitalista, aumentando o desnível social cada vez mais, na esteira do desenvolvimento tecnológico e produtivo.

Como não poderia deixar de ser, no Brasil esta incoerência, não assumida pela codificação, contribuiu para as desigualdades e exclusão social da porção mais considerável do povo.

No curso do século XX (entendido como tal não a partir de seu momento cronológico inicial, mas pelos marcos históricos que representaram a efetiva ruptura com os cem anos precedentes, cabendo lembrar, como tais, a Revolução Russa de 1917 e o final da Primeira Guerra Mundial, pelas modificações que provocaram nos diferentes Estados, por via direta ou reflexa) - nesta cronologia considerado o Código Civil brasileiro fruto do século XIX - o gradativo abandono da neutralidade do direito (a despeito da influência das idéias de pensadores como Kelsen) provocou a crise deste modelo ideologicamente baseado no individualismo capitalista redigido para regular a vida da sociedade civil como documento completo e único, e de alguns de seus dogmas tradicionais, além do reconhecimento da sua historicidade e vinculação a um momento sócio-político-econômico.

Nesta linha, um dos meios (quiçá o primeiro) a partir dos ,quais se assumiu formalmente o esgotamento e insuficiência do modelo codificado para trabalhar a realidade foi através da edição dos estatutos especiais, regulamentadores de temas específicos, típicos da realidade do século XX (de que são exemplos o condomínio em edificações, a locação de prédios e o parcelamento do solo urbano).

Estes estatutos, designados num primeiro momento como leis extravagantes, foram editados em razão de pressões sociais, para atendimento das mais diversas necessidades, em particular a proteção da parte economicamente mais fraca, que, na passagem de uma realidade rural para a vida urbana, viu-se compelida, v.g. a locar imóveis para moradia, comprar terrenos a prestação, mediante compromissos de compra e venda, por não ser titular de direito proprietário sobre imóveis residenciais, ou a residir em apartamentos, muitas vezes adquiridos antes de serem construídos, ficando, ao assumir estas obrigações, desamparados pelo código civil, ante as lacunas nele existentes a respeito destas relações jurídicas, ou pela inviabilidade de operacionalização do contido no seu texto a propósito de determinados temas, como ocorreu com a locação urbana. Portanto e neste passo, os estatutos revogaram ou complementaram o contido na codificação.

A edição de um número cada vez maior de textos de lei especial provocou uma verdadeira descentralização do sistema de direito privado, ausente na perspectiva dos idealizadores da codificação, excluindo o monismo consagrado no código civil, em atendimento às emergências sociais.

Por via de conseqüência, conforme observou Gustavo TEPEDINO, a recepção destas novas fontes de direito operou uma inversão hermenêutica, uma vez que as regras de interpretação transferiram-se do instituído pelo sistema da codificação para o âmbito das leis especiais, ainda que mantida a aplicação residual do código civil, que se tornou, desta sorte, um sistema fragmentado, ora excluído, ora complementar à constelação de microssistemas estabelecidos.

Da dicotomia direito público-direito privado à constitucionalização do direito civil

Ainda que a recepção da proteção dos interesses sociais, paralelamente aos interesses individuais, embora preservando o paradigma liberal de ordenamento jurídico, tenha-se evidenciado com maior nitidez, se bem que não exclusivamente, como conseqüência do welfare State, o qual, por sua vez, foi uma manifestação característica do período posterior ao fim da Segunda Guerra mundial, pelas profundas transformações econômicas que provocou, levando à preocupação com o meio ambiente e a qualidade de vida da população, o retorno do sentido do direito civil às suas raízes romanas, sua compreensão como o direito do cidadão, só em momento posterior se manifestou.

Hoje reconhece-se a contradição existente em reputar a codificações civis como leis fundamentais da sociedade civil, em oposição ao Estado, pela admissão de que seria absurdo pretender obter proteção do Estado, sem querer submeter-se aos parâmetros de convivência pelo mesmo estabelecidos em razão do interesse público.

Refere Natalino IRTI, a propósito, que não se pode participar das duas naturezas: estar, simultaneamente, fora e dentro do Estado; pleitear proteção e negar-lhe obediência.

Nesta perspectiva, que significa a retomada pelo direito privado de sua vocação original de direito do cidadão - jus civile, em oposição ao sentido de direito burguês, voltado para a proteção de interesses individuais, que lhe foi atribuído a partir da Revolução Francesa, a cidadania deixa de ser considerada apenas uma relação política entre o indivíduo e o Estado, para se fazer presente em outros níveis e espaços sociais e econômicos, como por exemplo na empresa, onde, superando o poder patronal a que tradicionalmente ficava submetido o trabalhador, passa a ele a ter direito de expressão, de informação, de participação (Não há como se esquecer, no entanto, no caso específico dos direitos da cidadania adquiridos pelo trabalhador na empresa, que, em razão da crise econômica, tais direitos vêm sendo retomados pelos dirigentes destas pessoas jurídicas.)

É inquestionável, outrossim, que, se a visão da cidadania sob esta nova ótica é conquista recente no Brasil, e já se acha relativizada no exemplo citado, subsiste intocada em outras situações, v.g. na garantia dos direitos do cidadão perante a administração pública, consistente no respeito obrigatório do princípio do contraditório e da ampla defesa nos procedimentos de natureza administrativa.

Este sentido protecionista e solidarista - voltado para uma realidade sócio-econômica diversificada, de vida predominantemente urbana, em contradição com a vivência rural prevalente à época da edição do código, realidade na qual subsiste a predominância da economia empresarial sobre o capitalista-indivíduo de outrora, momento em que o desenvolvimento social se torna desejável, senão obrigatório, para inserir o país num sistema global, ao qual necessariamente se vincula pelos novos mecanismos econômicos e pelos meios de comunicação - operou-se através da manifestação de forças antagônicas reunidas em assembléia constituinte, que conseguiram delinear, no texto constitucional, elementos desta evolução, adequando as categorias jurídicas tradicionais às atuais exigências sócio-econômico-culturais brasileiras, se não efetivamente, pela fragilidade dos mecanismos existentes para sua operacionalização, pelo menos no texto da lei maior.

Esta dificuldade em operar o texto constitucional, no sentido de tornar efetivas as garantias ali instituídas, pode ser relacionada com a seguinte circunstância: ao reconhecer as falhas e o caráter ultrapassado do modelo codificado para trabalhar com a realidade, adotou-se a mesma estrutura lógico-formal a partir da qual foi engendrado o sistema jurídico vigente, cuja sobrevivência, neste passo, foi garantida, de onde a pertinência, v.g. da continuidade da discussão relativa à aprovação de um novo código civil para o Brasil, quando poderia ter sido feita a opção pela descodificação.

É necessário reconhecer, no entanto, que as disposições inseridas na carta constitucional alteraram qualitativamente o conteúdo das categorias abordadas, num movimento de ruptura, buscando atender às aspirações da sociedade brasileira no limiar do novo século.

Assim, ao recepcionar-se, na Constituição Federal, temas que compreendiam, na dicotomia tradicional, o estatuto privado, provocou-se transformações fundamentais do sistema de direito civil clássico: na propriedade (não mais vista como um direito individual, de característica absoluta, mas pluralizada e vinculada â sua função social); na família (que, antes hierarquizada, passa a ser igualitária no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil artificial constante no texto codificado, que via como sua fonte única o casamento, tornando-se plural quanto à sua origem) e nas relações contratuais (onde foram previstas intervenções voltadas para o interesse de categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se a preocupação com a justiça distributiva).

Esta publicização do direito regulador das relações privadas, e a concomitante privatização das normas aplicáveis à atividade do Estado, tomou menos nítida, na ótica da ordem jurídica, a distinção entre direito público e direito privado, sendo fenômeno reconhecido, como regra, nos sistemas jurídicos romanistas atuais.

Envolve um fenômeno que objetiva, por um lado, a renovação da estrutura da sociedade, e, por outro, a adaptação a uma nova realidade econômico-social, em que os padrões tradicionais foram drasticamente alterados, com a internacionalização das relações econômicas e sociais, obrigando a repensar os valores ideologicamente consagrados no ordenamento jurídico e as influências interdisciplinares sofridas pelo direito nesta fase de mutação.

A superação do sistema do direito privado clássico

Reconhecendo a correspondência entre o paradigma de sistema jurídico hoje prevalente e o modelo engendrado pelo liberalismo, dois séculos atrás, o qual, embora tenha sido atualizado em seu conteúdo, reflete a mesma concepção das relações entre os homens há duzentos anos, estando, neste sentido, superado pelas emergências sociais, o que se tem observado é uma tentativa de adaptação do modelo vigente, buscando atender a realidade atual, por um lado, e por outro, subsistir.

Neste passo, conseqüência peculiar do caráter anacrônico deste modelo é a valorização do operador jurídico, de sua atuação, na medida em que o obriga a seguir na direção para que apontam as transformações pelas quais passa a sociedade no momento histórico presente, afastando-o do apego aos dogmas e às categorias tradicionais do direito, à pena de declínio e exclusão profissional.

Abandono da neutralidade e leitura interdisciplinar

Enraizado no racionalismo-individualista, o sistema jurídico liberal induz à lógica, à generalidade e à abstração. A partir de sua orientação filosófica, exagera o papel da razão, em detrimento da experiência, utilizando como método de investigação científica os dados obtidos por dedução, excluindo os elementos empíricos obtidos por indução.

Isto determinou, por longo período, a prisão do jurista à busca do sentido do direito exclusivamente no texto legal, afastada a preocupação com realizar justiça, e ao positivismo, chegando a KELSEN e sua teoria pura, divorciada da realidade.

Em KELSEN, o direito é apreendido como um sistema de normas, um conjunto de relações lógicas desvinculadas da natureza e do homem que dela faz parte.

Trata-se da expressão mais acabada da neutralidade do direito.

Assumida a ficção deste modo de ver o direito, reconhecida sua necessária funcionalização e vinculação ao contexto histórico de uma determinada época, embora mantida a estrutura formal racionalista-liberal na organização do sistema, não ficou esta isenta de críticas, como ocorre com a denominada e antes referida descodificação, entendida como o ocaso dos códigos, com sua pretensão de monossistema, passando para o polissistema, com a gradativa conquista de espaços pelas leis especiais, centradas na constituição, de tal sorte que a visão do fenômeno jurídico sob este novo ângulo conduziu a uma leitura interdisciplinar do direito.

A propósito, referiu Pietro BARCELLONA que a aparente neutralidade das formas jurídicas de espécie codificada, a conseqüente capacidade expansiva "endógena" das normas jurídicas, a independência entre o juízo jurídico e os outros critérios (sociais, éticos, etc) de valoração das condutas humanas, não são a expressão formal da intrínseca neutralidade do direito. Pelo contrário, constituem a expressão, uma expressão historicamente determinada, de sua intrínseca historicidade, de seu perfil de fenômeno histórico.

Isto significa recepcionar o pluralismo jurídico, reconhecendo que o direito estatal concorre com ordens independentes dele, devendo ser trabalhado a partir da articulação, da intercomunicação e interpenetração entre estas diversas ordens.

Na expressão de Antônio Carlos WOLKMER, "Uma perspectiva interdisciplinar revela que a inter-relação fragmentada do legal não é mais vista como anárquica e que é perfeitamente admissível viver num mundo de juridicidade policêntrica".

Concluindo: "Neste contexto, o pluralismo enquanto perspectiva interdisciplinar consegue, no largo espectro da historicidade de uma comunidade regional ou global, intercalar o 'singular' com a 'pluralidade', a junção democrática da variedade com a equivalência, a tolerância expressa na convivência do particular com a multiplicidade".

A partir da leitura interdisciplinar do direito, portanto, a análise de cada caso concreto, na sua historicidade, é obrigatória em qualquer circunstância: há que se entender e interpretar a cultura do povo, seus valores e sua psicologia, para apontar a pertinência da solução apontada, diante da provável reação dos cidadãos às situações emergentes, envolvam elas crises e dificuldades, ou mesmo êxito.

Trata-se de um repensar o direito no contexto de uma ordem capaz de vincular lei e realidade.

Este modelo epistemológico significa, por via de conseqüência, que os resultados apontados jamais poderão ser únicos, devendo ser adequados, para a situação, momento e local específicos a que se dirigem, à pena de criar-se uma nova ficção, divorciada da realidade e sem condição de atender com sucesso aos reclamos daquela determinada tensão ou emergência social.

Passagem da autonomia privada ao interesse social

No Brasil, a transição da sociedade agrária, em que a família era uma célula não apenas patriarcal, mas também econômica, produtiva, para a realidade urbana, vinculada à industrialização e ao comércio, com a conseqüente mobilidade dos indivíduos, na busca do emprego e da melhoria de vida deu-se de forma traumática, sem nenhum preparo cultural.

Em razão de problemas externos, que, embora não exclusivamente, podem ser debitados às crises político-econômicas provocadas pelos detentores eventuais do poder, o quadro social brasileiro revela significativo êxodo rural, extremamente acentuado na segunda metade deste século, com todas as conseqüências interdisciplinares daí decorrentes.

Não bastasse ser a industrialização hoje considerada uma forma antiga de desenvolvimento, o modelo industrial brasileiro também é ultrapassado, como também o é nosso sistema educacional.

Neste contexto, a Constituição Federal brasileira de 1988 foi levada a refletir, em várias de suas normas, um perfil solidarista e intervencionista, atendendo, ao menos formalmente - tendo em vista que estas garantias, como regra, não se tornaram efetivas no cotidiano dos cidadãos e na operacionalização do direito -, a pressões sociais, na busca de mecanismos capazes de suprir as necessidades dos cidadãos, em especial dos excluídos.

Num mundo em que o poder do conhecimento cada vez mais se acentua, de tal sorte que o próprio poder econômico não pode mais ser satisfatoriamente exercido senão apoiado em um conjunto de informações, programas de computadores, conhecimentos sofisticados e especializados, à pena de perecimento ou inviabilização da atividade exercida, os valores imateriais cada vez mais superam o interesse privado de apropriação de bens, o que justifica a sobrevalorização do interesse social na preservação do equilíbrio dos contratos.

Neste novo contexto, ainda que mantida a estrutura jurídica liberal-burguesa na organização do sistema, não há nenhum sentido na proteção de um direito proprietário de conotação individualista, privilegiando, no que se refere aos bens sobre os quais incide, a apropriação imobiliária, como o fez o texto do Código Civil brasileiro de 1916, editado numa época em que a base das fortunas era a propriedade fundiária, eis que, no momento histórico atual, caminha-se na direção da despatrimonialização dos bens jurídicos, valorizando o conhecimento e a educação (entendido o aprendizado como um fenômeno muito mais amplo do que a educação formal, uma vez que a informação se transmite hoje com celeridade incapaz de ser acompanhada no cotidiano pelas escolas, de onde a contínua necessidade de complementar os dados obtidos numa educação escolar com elementos externos).

Esta despatrimonialização do direito civil não significa a exclusão do conteúdo patrimonial no direito, mas a funcionalização do próprio sistema econômico, diversificando sua valoração qualitativa, no sentido de direcioná-lo para produzir respeitando a dignidade da pessoa humana (e o meio ambiente) e distribuir as riquezas com maior justiça.

Por tudo isto, pode-se asseverar que os novos paradigmas, consagrados constitucionalmente, com relação à apropriação de bens e relações contratuais, funcionalizando o exercício destas atividades com um sentido social, antecedida pelo rol de direitos e garantidas do cidadão, princípios categóricos, instituídos no plano individual e coletivo, para trabalhar suas dimensões fundamentais, afetando o direito em geral e o direito privado em particular, correspondem, ao menos em parte, a um reflexo da concepção da vida da sociedade, com as inspirações interdisciplinares que sofre.

Assim, embora se mantenha, como princípio, um direito centrado no homem, construído segundo o imaginário racionalista-liberal, estabelece-se restrições e limites, voltados para a preservação dos interesses coletivos, bem como para o desenvolvimento e preservação da dignidade do cidadão, ausentes no sistema clássico do direito civil, consolidado no Código de 1916.

Neste sentido, a preocupação com o renascer da codificação, ainda que com uma roupagem modernizada, visualizada num novo texto, na medida em que seja vista como um retorno ao direito voltado para os interesses privados, centrados no indivíduo, em oposição aos interesses sociais, ordenado num sistema que se pretenda completo, situa-se na contramão da história, pela tendência à superação da dicotomia direito público-direito privado, através da constitucionalização dos institutos básicos do direito civil, a serem regulamentados por estatutos próprios, presumivelmente mais eficazes no trato destes temas, por sua especialização.

Marcos Katsumi Kay - N1

quinta-feira, 27 de março de 2008

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 141-155.
Estrutura: Tríplice Vértice Fundante do Privado. Pilares de Base. Conceito, Moldura e Sistema.
Resumo:

Tríplice Vértice Fundante do Privado

A separação une. Classificações, dicotomias e divisões organizam o sistema, e cumprem relevante função veiculada através da linguagem.

Na ótica do modelo clássico, há uma dicotomia inicial que separa o conjunto de regras de Direito Privado e de Direito Público. Esta dicotomia está assentada em alguns referenciais, como, por exemplo, a qualidade do sujeito.

Tratando-se de particulares as relações seriam de Direito Privado e, se num dos pólos dessa relação figurassem pessoas como o Estado ou o Município, apresentar-se-ia relação jurídica de Direito Público. Há outro referencial também discutível ao lado da qualidade do sujeito. É a natureza da relação jurídica, segundo a qual, se foi o vínculo marcado pela subordinação, isto é, por uma supremacia juridicamente legítima de uma parte sobre a outra, como no caso do fisco em relação ao contribuinte numa obrigação tributária, estaria inserido no Direito Público. No Direito Privado, relações são, em regra, marcadas pelo sentido de coordenação, ou seja, são pólos de uma relação jurídica que não estabelecem desde o início, na sua essência, compromisso de prioridade ou supremacia de um sobre o outro.

Referenciais precários, dicotomia que serve antes para explicar didaticamente a separação de regras como fenômeno jurídico e para marcar uma divisão. Dois segmentos de relações que procuram levantar fronteiras na organização do sistema do Direito Privado, assentado no contrato, patrimônio e família, elementos que compõem um tríplice vértice, a base fundante do privado.

Pilares de Base

O Direito Privado (mesmo à luz do novo CCB de 2002) se projeta para o âmbito dessas relações entre particulares, e se arma uma estrutura jurídica que se dispõe a organizar esses pilares e todas as suas projeções. O sistema se organiza a partir desses elementos, como se infere adiante.

Para a noção de contrato é necessário primeiro ter um conjunto de princípios e regras que compõem, à luz do conceito de relação jurídica, a teoria desse sistema, codificada sob o nome de parte geral. Esta visa exatamente tratar princípios e regras, como, por exemplo, sobre interpretação dos negócios jurídicos, e também diretivas articuladas para fazer com que o contrato válido funcione. Nelas, a noção de sujeito vem adequadamente explicitada para ingressar como uma estrutura que impulsiona a dinâmica do contrato.

O contrato desenvolve uma expressão de autonomia da pessoa no espaço de uma certa liberdade. Essa é a concepção que se propôs a superar o dogma da vontade na concretização de personalismo ético. A questão está no limite contundente dessa configuração jurídica, que se reconhece incompleta e imperfeita.

Os contratos pressupõem "vontades" e, por isso mesmo, pressupõem a existência de alguém que manifeste essa vontade; daí ser imprescindível a relação de sujeito: o sujeito em si mesmo não é suficiente, sendo necessário colocá-lo em relação com outro, donde surge a relação jurídica. Essa idéia vai vincular sobre o que recaem poderes e deveres, portanto, nesse sentido, emerge também a noção de objeto, que passa a ser, do mesmo modo que as demais, uma expressão dos pilares que compõem a base do Direito Privado.

Sujeito, obviamente, se refere à pessoa, noção não necessariamente a mesma que aquela incorporada pelo fenômeno jurídico . Reconhecidamente no modelo clássico, a nem toda pessoa é reconhecido esse status de sujeito de direito. A definição de sujeito é noção que impera em corte, a partir da realidade que projeta para o âmbito do sistema jurídico. Nesse sentido, nem tudo e nem todos ingressam no sistema.

Pessoa é um conceito elaborado a partir da associação com o sistema jurídico, ser a que se atribuem direitos e obrigações. Este é o pórtico conceitual, para ser pessoa perante o Direito, é preciso "ter" direitos e obrigações. Antes de captar o ser, apreende-se pessoa como criação modelada pela ordem jurídica. Fica, então, clara esta idéia de corte entre pessoa como realidade autônoma e anterior ao sistema jurídico.

Esses exemplos estão formulados de acordo com as fontes do direito romano, mas uma leitura contemporânea reconhece que, do ponto de vista teórico, não temos mais a morte civil como tal ordenamento jurídico. Por outro lado, basta recolher materiais da realidade contemporânea para apreender versão muito própria das distinções, que ainda permanecem. Isso parece ficar evidenciado na afirmação do professor Manuel Antonio Domingues Andrade, segundo o qual, como visto, todo o sujeito de direito é necessariamente pessoa em sentido jurídico embora à inversa não seja teoricamente exata. Numa nota de rodapé, dá exemplo de estado como qualidade jurídica, e anota que Ferrara escreveu: "São condições, os estados naturais ou civis das pessoas qu e influem sobre o gozo ou sobre o exercício dos direitos." Exernplifica a seguir com a idade, o sexo, a enfermidade, a posição na família, a condição de nacional ou de estrangeiro, a posição de membro de uma associação, a relação com o domicílio, a qualidade de comerciante" e concluiu: "esses estados ou qualidades caraterizam juridicamente o sujeito, dando-lhe uma noção e medida de direito e obrigações".

Nessa dimensão, arremata uma derradeira observação, ao tratar das vicissitudes das relações jurídicas em geral, o professor Emílio Betti: "O nascimento de um direito importa sempre a sua atribuição ao sujeito e, portanto, a sua aquisição, visto que qualquer direito é adquirido com base na valoração de uma ordem jurídica, e que nenhum direito é inato no sentido de poder preexistir a essa ordem jurídica". Esta afirmação é de uma gravidade transcendental, não imune a críticas. Se, de um lado, se reconhece uma certa virtude no sentido de que isso organiza formalmente o sistema e lhe confere uma certa dose de segurança no tráfego das relações jurídicas, por outro lado, a época contemporânea está marcada pela presença de certos fenômenos que não se contêm nessa ordem de idéias. E fica mais evidenciado do que nunca que o sentido formal que testemunha a noção de sujeito de direito, é um sentido rente à concepção dominante dos valores de uma dada sociedade.

No livro de Michel Miaille, uma afirmação resume: "Fica-se pois com a noção que a categoria jurídica de sujeito de direito não é uma categoria racional em si. Ela surge num momento relativamente preciso da história e desenvolve-se como uma das condições de hegemonia de um novo modo de produção." Liga-se o sujeito de direito a esse dado momento da história, em que houve uma certa inserção econômica, política e cultural. Não há uma categoria que tenha transitado durante todos os tempos, através dos séculos, como apta para exemplificar todos esses modelos.

Conceito, Moldura e Sistema

Ao se começar a estudar Direito Civil, explícita-se o significado etimológico da palavra "pessoa", base do conceito de sujeito. "Persona", originariamente máscara, explicada pelo professor Miguel Maria de Serpa Lopes: "A palavra pessoa, em Roma, servia para designar a máscara trágica que engrossava a voz do ator e também a máscara dos ancestrais que se apresentavam nos cortejos fúnebres". Esta é a origem: "Tomando o sentido jurídico é para as pessoas que o direito foi feito"; "persona" foi conceituada progressivamente como sendo ser humano capaz de direitos e obrigações.

Isso parece evidenciar que na exata medida em que se necessitava de um conceito para colocar no centro dessa moldura do sistema jurídico, esse conceito não foi um sentido material em si, da pessoa, e, sim, algo que era sobre o ser; depositada esta máscara que se colocava sobre a face, emergia algo externo ao próprio ser. Esse Direito não se compadece da noção material de pessoa. É a noção formal que reduz a de pessoa a um complexo de normas, ou centro de interesses.

Serpa Lopes explica essas diferenças entre conceito material e conceito formal da pessoa:

No conceito de pessoa, duas posições existem no campo doutrinário: ou se considera a tecedura meramente formal, isto é, aquele centro ao qual o ordenamento jurídico imputa atos ou fatos jurídicos capazes de levar a uma aquisição de direito ou uma assunção de obrigações. Esse é o conceito Kelseniano de pessoa, portanto, é o conceito formal ou, ao contrário, o conceito de pessoa exige no direito a própria materialidade mesma que é tal homem e por extensão, a pessoa por nascer.

Se a noção de pessoa surge a partir de um complexo de normas, duas conclusões emergem: primeira, só há pessoa a partir do ordenamento jurídico, logo, a pessoa não é um conceito anterior; segunda, todas as pessoas são, nessa medida, pessoas jurídicas porque, evidentemente, só é pessoa aquela definida enquanto tal pelo ordenamento jurídico.

Mesmo anotando-se a idéia da materialidade como fundante da concepção de pessoa, urge examinar como isso se projeta para o mundo do Direito, e, ainda mais, como se projeta num conceito de personalidade jurídica. Quando se diz que alguém pode ser titular de direitos e obrigações e que tem aquilo que se chama de aptidões genéricas para contrair obrigações, estamos diante de um fenômeno de personalidade jurídica.

A idéia da personalidade convive exatamente como dies a quo e dies ad quem da existência; convive com o sentido da vida e da morte, o princípio e a terminação da vida. O problema está em saber o começo e o fim da vida para o Direito. O Direito, a Biologia a Psicologia e tantas outras ciências, não têm os mesmos conceitos sobre a vida que começa ou sobre quando se dá o início da geração. Basta para o artigo 2° do novo Código Civil, nascimento com vida da pessoa para lhe atribuir o status de ser portador da personalidade jurídica. E é nessa exata medida que surge a questão de saber se o nascituro tem ou não tem personalidade jurídica, o que significa verificar se o nascituro é ou não é sujeito de direito. O ser que aí nasce, ao nascer para o sistema jurídico, é colhido por um embalo insular. Isto quer dizer que o natimorto não é e nunca foi sujeito de direito.

Se o nascituro não tem personalidade jurídica, não é sujeito, porém, os bens não vão para outro sujeito, nem para nenhum dos ascendentes vivos. Eles ficam num estado transitório, que é o mesmo que se passa com a herança jacente, ou seja, se falece alguém que não deixa herdeiros, até o momento de o Município recolher, nos termos do novo Código Civil, há um estado transitório, em que aquilo não pertence a ninguém. É claro que há uma curadoria, ou seja, há administração desse bem. A rigor, não há titular desse bem em estado transitório. É o mesmo que se passa quando determinado título de crédito ao portador tiver sido abandonado e quando for evidente o abandono. O abandono implica uma deixa, e com ela constitui ares derelicta ou a derilição, que é a saída do bem da sua esfera jurídica. Há certos estágios transitórios que implicam essa figura dos chamados direitos sem sujeito.

Isto está mais propriamente exposto pelo professor Carlos Alberto da Mata Pinto: "para chegar à conclusão que não é possível, no nosso sistema, utilizar essa expressão sem cometer uma contradição, eis que no nosso sistema, a todo o direito corresponde um sujeito". Para se tornar sujeito é preciso ter algum direito e para existir o direito é necessário que ele se ligue a um sujeito, então, não há direito sem sujeito e nem sujeito sem direito. E é por isso que ele sugere uma outra ordem de idéias, quando diz: "se há relação jurídica, tem que haver sujeito do poder e sujeito da obrigação". Não se descortinando um sujeito (nas hipóteses referidas: herança jacente, abandono de título de crédito ao portador) parece preferível relação jurídica imperfeita sob a tese dos estados de vinculação dos bens, não chegando sequer a existir direitos subjetivos.

Como o Direito evita reconhecer que a categoria do sujeito não dá conta de toda a realidade, cria-se, então, "realidade teórica", o estado de vinculação; estado que indica uma qualidade que significa que aquele bem por direito, naquele dado momento transitório, não se encontra vinculado a qualquer-sujeito. A expressão quer dizer exatamente o oposto daquilo que ela sugere: não há vinculação transitória com sujeito algum. Elimina-se, aparentemente, alguma incerteza.

Essa ordem de idéias que estava e está presente no nascituro, no começo da vida, em seu sentido jurídico, também pode estar presente ao final da vida, no fenômeno da ausência. A morte biológica, de um modo geral, coloca fim a vida. Entretanto, a falta ou a impossibilidade da comprovação da morte biológica gera a necessidade muitas vezes de provar e selar a morte, ainda que biologicamente não seja possível. E há inúmeras circunstâncias nesse sentido que sugerem esse procedimento; uma delas é a necessidade de administrar bens. Aquele que desaparece do seu domicílio, não deixando procurador ou mandatário, pode ter reconhecida a morte presumida ou o início da sua ausência provocado em juízo. Infere-se, então, que neste modelo todos estão num lugar jurídico, e os que dele se demitem ou nele não permanecem por razões involuntárias podem estar na categoria de ausentes. Assim, ali estão, mesmo não estando fisicamente.

A ausência se desdobra em três etapas fundamentais: administração provisória ou curadoria provisória; sucessão provisória, e, por último, a sucessão definitiva.

É evidente que há mecanismos intermediários em cada uma dessas fases para não deixar o patrimônio sem alguém que por ele zele e o administre. Não há, a rigor, sujeito, mesmo na fase da sucessão provisória, em que os herdeiros ou sucessores têm a imissão na posse, e não são eles ainda os titulares formais daquela massa de bens. Os herdeiros só passam a ser sujeitos desse patrimônio a partir da sucessão definitiva. E, mesmo assim, é possível imaginar o regressam daquele que já teve a sua ausência declarada e as seqüelas que o regresso possa trazer no campo patrimonial e no pessoal e familiar.

A personalidade projeta o plano não apenas da titularidade do direito, como também no exercício. E aqui, emerge a noção de capacidade. O capaz, do ponto de vista do direito, é aquele que tem aptidão genérica para ser sujeito de direitos e obrigações. Não obstante, o fato de ter essa capacidade abstrata não significa que tenha a capacidade concreta, ou seja, a capacidade dita de exercício, ou de gozo dos seus direitos. Esse exercício é aquele que o sujeito deve fazer, por si, se puder.

A capacidade se subdivide em dois momentos fundamentais: o primeiro é aquele em que o sujeito exercita o direito que integra a esfera jurídica por si mesmo; o segundo se dá quando ele tem personalidade jurídica e capacidade de direito, todavia, não tem capacidade de exercício por si, mas como o direito lhe pertence, ele pode colocar esse direito no tráfego jurídico. Não podendo decidir sobre isso, o sistema jurídico arma uma moldura instrumental para viabilizar esse tráfego, e o faz mediante os institutos da representação e da assistência.

Tratando-se de incapaz absoluto, o sujeito é representado; tratando-se de incapaz relativo, é assistido. É para isso que servem os artigos 3° e 4° do novo Código Civil, ou seja, para fazer a distinção clara do rótulo entre o incapaz absoluto, aquele que não tem qualquer grau do exercício, e aquele que é incapaz relativo. A palavra relativo quer dizer que os incapazes relativos o são em relação a certos atos.!"

A curatela, quer seja a dos relativamente incapazes, quer seja a própria curatela da patologia da sanidade, fronteiriça ou transitória, é um instituto jurídico de representação dos incapazes que permite, no caso concreto, uma mensuração da impossibilidade do exercício. Não há regra geral que sempre faça do curatelado interditado para todos os efeitos; estará interditado para os efeitos que a sentença da interdição declarar. O procedimento da curatela se ata sempre à verificação do caso concreto. E é por isso que o sistema jurídico adota a seguinte formulação: a regra é que todos sejam capazes. Tanto é assim que, no sistema do Código, não há rol de capacidade, e não se encontra no Código uma definição do que seja, exatamente, a capacidade. O Código, nesta matéria, estabeleceu a exceção, ou seja, o rol dos incapazes. E o fez a partir de alguns juízos de exclusão jurídica, como de diminuição da capacidade de exercício, ao distinguir, como já mencionado, os incapazes.

Os atos praticados por relativamente capazes, na esfera do artigo 171 do NCC, são reputados como atos anuláveis. Essa capacidade, portanto, reveste a idéia de ser para o Direito, ou seja, a capacidade é o modo de ser perante o Direito, e compreende, no plano das pessoas tidas naturais ou físicas, uma outra dimensão que é a dimensão do estado jurídico. Em seguida, nesse plano, aparece a ligação a um dado ente, e ao dizer identidade, coloca-se a pessoa diante de uma entidade, que pode ser a família, o estado familiar da pessoa natural. Dela se aparta, para esse efeito de configuração, a pessoa jurídica.

Marcos Katsumi Kay - N1