quarta-feira, 20 de agosto de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - INTRODUÇÃO

O Código Civil brasileiro de 1916 surge após um longo processo de desenvolvimento histórico e sociológico, que se inicia desde antes das Ordenações Filipinas durante o domínio espanhol. Foi um processo muito interessante e surpreendente de permanência, rupturas suaves, inovações e de respeito à tradição, ainda que esteja clara a transformação.

Neste trabalho, o sentido literal da letra da lei não tem grande relevância. O que se pretende analisar é a maneira pela qual se chegou a esse Código, ou seja, quais - e em que medida - foram os elementos que o influenciaram, quais os fatos relevantes que o precederam e que, para ele, tiveram importância, quais as características da sociedade que o recebeu. Enfim, um Código não surge repentinamente, ele é fruto de um processo complexo cuja compreensão facilita o posterior entendimento dos preceitos nele positivados.

Tentaremos demonstrar esse processo, discorrendo sobre os seguintes tópicos: o processo histórico e sociológico de formação do Código Civil de 1916; a estrutura social brasileira no período de elaboração do Código; a importância do anteprojeto de Teixeira de Freitas; as características substanciais e formais do Código Civil Brasileiro de 1916 e, por fim, a influência do Code, do BGB e da tradição romanista.

Marcos Katsumi Kay - N1

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

CÓDIGO CIVIL DE 1916 - O processo histórico e sociológico de formação

Segundo Orlando Gomes (2003), a história do Direito Civil brasileiro caracteriza-se pela vigência, por mais de três séculos, das Ordenações Filipinas. A longevidade desse corpo legislativo, organizada para Portugal do século XVII, impediu que o país se integrasse no movimento de renovação legislativa das nações ocidentais no século XIX. Ao contrário do que sucedeu com os outros países ibero-americanos, o Brasil não codificou suas leis civis nesse século, passando diretamente do sistema das Ordenações Filipinas ao Código Civil de 1916.

A extraordinária vitalidade das Ordenações Filipinas deve-se, ainda segundo o mesmo autor, possivelmente, a essa imposição de uma fonte subsidiária tão flexível como o direito canônico, o romano e as opiniões de Acúrsio e Bartolo. Um de seus principais defeitos consistia na abundância de omissões, sendo, contudo, o segredo de sua longevidade em Portugal e, mais do que lá, no Brasil.

Também explica essa singularidade de ter durado mais no Brasil a legislação civil baseada nas Ordenações Filipinas o fato de ter se conservado por mais tempo, entre nós, as condições e formas de vida para as quais fora ditada tal legislação. Portugal estava mais próximo da influência exercida no movimento de renovação legislativa, no século XIX, pelo Código de Napoleão. As idéias liberais, que haviam penetrado em Portugal, no começo do século XIX, influíram decisivamente na evolução do direito privado português. Compreensível que houvesse rompido, em muitos pontos, com a tradição representada por leis inspiradas nas necessidades de uma sociedade de tipo diferente, organizada politicamente, então, sob os moldes da monarquia absoluta.

O Brasil permanece fiel à tradição, enquanto Portugal se deixa influir pelas idéias francesas a ponto de consagrar inovações chocantes no seu Código de 1867. Sobre o vasto Império projetavam-se os tentáculos da sociedade colonial baseada no escravo. Embora se fizesse sentir a necessidade de reformar a legislação civil, mediante a elaboração de um código que, por disposição constitucional, deveria ser fundado nas sólidas bases da Justiça e da Eqüidade, malograram, no Império, três tentativas de codificação: a de Teixeira de Freitas (1859), a de Nabuco de Araújo (1872) e a de Felício dos Santos (1881). A circunstância de não ter sido elaborado o Código Civil pátrio no século XIX deve ter concorrido para a preservação, em maior escala, da tradição jurídica lusitana.

Não faltando lembranças ao governo de que a sistematização e a renovação do direito civil se faziam necessárias, o então ministro da Justiça José Thomaz Nabuco de Araújo pediu a Augusto Teixeira de Freitas, advogado reconhecido, aspirante a jurisconsulto, juiz de direito, membro fundador do Instituto dos Advogados Brasileiros, que elaborasse um plano de redação do Código Civil. Este sugeriu que se fizesse primeiro uma compilação sistemática da legislação existente, que seria denominada Consolidação das leis civis. O próprio Teixeira de Freitas dizia, segundo Keila Grinberg (2001), que as Ordenações Filipinas eram "pobríssimas", e pediam "copioso suplemento", muitas vezes tirados da legislação romana, inadequada à realidade brasileira de então. A Consolidação das Leis Civis condensa os resultados da experiência jurídica lentamente acumulada sobre as Ordenações. A influência de Teixeira de Freitas exerceu-se também por meio do Esboço, que inspirou disposições do Código Civil, notadamente da parte geral, do direito das obrigações e de certos institutos do direito das coisas.

Contudo, a fidelidade do Código à tradição e ao estado social do país revela-se mais persistente no direito de família e no direito das sucessões, não dá mostras de um espírito tão radical como o de outras legislações americanas, pois conserva o princípio da indissolubilidade do matrimônio, o regime da comunhão universal de bens, o das legítimas e várias outras normas de certo sentido conservador, explica Gomes (2003).

O Código incorpora certos princípios morais emprestando-lhes conteúdo jurídico, particularmente no direito familiar. Muitos preceitos, por outro lado, estão impregnados desse sentimentalismo tão próprio do temperamento brasileiro, que conduz à benignidade jurídica, como a causa do abrandamento da dureza de certas disposições do direito português. O espírito de tolerância baixou sobre muitas de suas normas, a sugerir e estimular interpretações liberais, que lubrificam a engrenagem dos institutos e amaciam os atritos com as solicitações da sentimentalidade nacional. Na sua elaboração, enfim, jamais se ausenta aquele privatismo doméstico que tem marcada influência na organização social do Brasil.

O Código Civil condensa um direito mais preocupado com o círculo social da família do que com os círculos sociais da nação. Em vários artigos do Código há a preponderância do círculo da família, ainda despoticamente patriarcal. Para o casamento dos menores de vinte e um anos, exige o consentimento de ambos os pais, mas discordando eles entre si, manda que prevaleça a paterna. O marido é o chefe da sociedade conjugal, competindo-lhe administrar os particulares da mulher, fixar e mudar o endereço da família, e autorizar a profissão da esposa. O juiz pode ordenar a separação dos filhos de mãe que contrai novas núpcias, se provado que ela, ou o padrasto, não os trata convenientemente. A mãe bínuba perde quanto aos filhos do leito anterior, os direitos do pátrio poder. O direito de nomear tutor compete ao pai. Consagra-se, assim, a posição privilegiada homem na sociedade conjugal.

Esse privatismo doméstico parece ser a nota dominante em nossa legislação. Explica-se por particularidades de nossa organização social, destacadas por sociólogos e estudiosos do meio brasileiro e pelo atraso de sua evolução. As forças íntimas de nossa civilização elaboram-se no campo. Até ter sido abolida a escravidão, pouco antes, por conseguinte, de ser iniciada a elaboração do Código Civil, a estrutura de nossa sociedade tem a sua base fora das cidades. A influência da organização social do Brasil-colônia faz-se sentir até o fim do século XIX, e é nos primeiros anos do século XX que começa a discussão do projeto de Código Civil elaborado por Clóvis Beviláqua. Natural, assim, que repercutisse, na sua preparação, aquele primitivismo patriarcal que caracterizou o estilo de vida da sociedade colonial. Razões históricas e ecológicas modelaram-na por forma a que preponderasse na organização social, a ordem privada.

Esse predomínio viera da sociedade colonial, dispersa, incoesa e de estrutura aristocrática, que criara uma forma de organização social contrária à politização. A emancipação política do país não modificaria fundamentalmente essa estrutura. A sua classe política seria constituída pelas famílias que detinham a propriedade territorial e o monopólio de mando, tendo como seus representantes (embora dela distanciadas pelo pensamento, pela educação literária e pela cultura) os doutores, que agiam em defesa de seus interesses (por tradição, por sentimento, por interesse, e pelo instinto conservador de todo poder). Essa elite distante, que vivia com o pensamento fixado na Europa, cairia facilmente naquele idealismo utópico. A sua ação não conseguiu, porém, transformar a ordem econômica social do país, que resistiu, mesmo depois da abolição dos escravos e da República, a sociedade colonial guardava ainda, fora do litoral, os seus arcabouços mais ou menos resistentes, aqui ou ali.

Mas, por outro lado, distancia-se da realidade, avançando o sinal, para recolher, na doutrina e na legislação de povos mais adiantados, concepções e disposições próprias do grau de seu desenvolvimento. A despeito da diferença flagrante entre o meio europeu e o brasileiro, muitas construções jurídicas da Europa continental são introduzidas sem maior resistência. O legislador pátrio, desdenhoso das condições materiais de existência do país, pôde, com mais facilidade, romper, em certos pontos, com as tradições do passado modificando as linhas arquitetônicas de importantes institutos jurídicos. Não estando atado a uma tradição arraigada, difícil lhe não foi aproveitar-se da experiência de outros sistemas jurídicos e adotar teses avançadas da doutrina estrangeira, para acolher, afinal, certas conquistas interessantes da ciência jurídica.

As condições de vida do país, tão distantes daquelas em que tais construções se levantaram, reagiriam sobre o próprio pensamento dessa elite progressista e exerceriam marcada influência sobre as instituições e o modo por que o direito seria aplicado. Por mais forte que houvesse sido o seu entusiasmo pelo progresso da ciência jurídica na Europa, não foi possível escapar à influência do meio. Na elaboração do Código Civil, como, de resto, em sua aplicação, esse condicionamento revela-se de modo a se poder perceber nitidamente o particularismo a que dá lugar. As condições econômicas dos povos da América determinaram soluções diversas das que a Europa adotava ou, apesar da tendência, mostra que, no Brasil atual, a tradição européia de proteção ao vendedor do imóvel não tem sentido, em vista do rápido ritmo de desenvolvimento do país e dos imóveis.

No período de elaboração do Código Civil, o divórcio entre a elite letrada e a massa inculta perpassa inalterado. A aristocracia representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arcabouço econômico. Natural que o Código refletisse as aspirações dessa elite e se contivesse, do mesmo passo, no círculo da realidade subjacente que cristalizara costumes, convertendo-os em instituições jurídicas tradicionais. Devido a essa contensão, o Código Civil, sem embargo de ter aproveitado frutos da experiência jurídica de outros povos, não se liberta daquela preocupação com o círculo social da família, que o distingue, incorporando à disciplina das instituições, básicas, como a propriedade, a família, a herança e a produção (contrato de trabalho), a filosofia e os sentimentos da classe senhorial. Suas concepções a respeito dessas instituições transfundem-se tranqüilamente no Código. Não obstante, desenvolveu-se, à larga, a propensão da elite letrada para elaborar um Código Civil à sua imagem e semelhança, isto é, de acordo com a representação que, no seu idealismo, fazia da sociedade.

Finaliza Gomes (2003) dizendo que o Código Civil brasileiro teve, assim, um cunho teórico. Os primeiros códigos da América Latina, promulgados no décimo nono século, refletiam o ideal de justiça de uma classe dirigente, européia por sua origem e formação, constituindo um direito que pouco levava em conta as condições de vida, os sentimentos ou as necessidades das outras partes da população, mantidas em um estado de completa ou meia escravidão. O retardamento na organização do Código Civil brasileiro permitiu que esse divórcio entre o direito teórico e a prático não fosse tão profundo entre nós como foi em outras nações do continente. Mas, ainda assim, a alienação constituiu freqüente recurso do legislador para dotar o país de uma legislação que nada ficasse a dever aos códigos mais modernos. Em várias disposições, é mais uma expressão de idéias do que de realidades.

Marcos Katsumi Kay - N1