quarta-feira, 26 de novembro de 2008

MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social dos contratos.

MARTINS-COSTA, Judith. Notas sobre o princípio da função social dos contratos.

Estrutura: Introdução. A liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato. A liberdade de contratar será exercida em razão da função social do contrato.

Resumo:

O primeiro princípio a aparecer no texto do art. 421 do Código Civil (a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato) é o princípio da liberdade contratual. A liberdade é valor fundante, decorrência do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Não se trata, porém, de uma liberdade exercida no vazio, mas de uma liberdade situada, a liberdade que se exerce na vida comunitária. Daí a imediata referência à função social do contrato. Essa força estruturante de uma nova dogmática contratual deve ser compreendida por meio de dois distintos níveis de compreensão semântica da expressão função social tal qual posta no texto.

Toda função é uma competência dirigida a uma finalidade. Na interpretação da expressão função social o problema não está no substantivo, mas no adjetivo. O que significa exatamente o social que qualifica a função? Dizendo respeito a um direito subjetivo (isto é à liberdade de contratar) o social está conotado ou à expansão intersubjetiva da liberdade ou à expansão trans-subjetiva da liberdade, ou mesmo a ambas dimensões? A liberdade será exercida nos limites da função social ou a liberdade de contratar será exercida em razão da função social.

Liberdade será exercida nos limites da função social. O início do séc. XX veio traçar uma nova trilha, agora em direção à funcionalização do direito subjetivo. São formuladas teorias negativas ao conceito de direito subjetivo, substituindo-o por outras figuras. Entre as mais relevantes estão as de Léon Duguit, que reconstrói a idéia de direito subjetivo afirmando existirem posições vantajosas para certas pessoas porque garantidas pelo poder estatal, na medida em que desempenham funções dignas dessa garantia; e de Otto Von Gierke, sustentando a existência de limites imanentes aos direitos, decorrentes da impossibilidade da existência de direitos sem deveres. Desde então, toda a teoria do direito subjetivo está polarizada entre duas teses: a dos limites internos ao direito, e a dos limites externos.

Se a esse papel de previsão de limite externo negativo se resumisse o princípio da função social do contrato, o art. 421 seria virtualmente inútil, uma vez que o exame de casos já decididos pela jurisprudência demonstra que, ou as hipóteses já estão apanhadas pela regra do art. 187 do Código Civil (ilicitude de meios), ou não se trata de caso de incidência do princípio da função social, mas hipóteses de interpretação favorável ao aderente, integração segundo a boa-fé, ou casos já regulados em leis especiais, como o Código de Defesa do Consumidor ou o Estatuto da Terra.

A expressão em razão da indica, concomitantemente: a) que a função social do contrato integra, constitutivamente, o modo de exercício do direito subjetivo (liberdade contratual); b) que é o seu fundamento, assim reconhecendo-se que toda e qualquer relação contratual possui, em graus diversos, duas distintas dimensões: uma, intersubjetiva, relacionando as partes entre si); outra, trans-subjetiva, ligando as partes a terceiros determinados ou indeterminados. A função social não opera apenas como um limite externo, é também um elemento integrativo do campo de função da autonomia privada no domínio da liberdade contratual. Percebe-se assim decorrerem várias eficácias próprias ao art. 421, repartidas nos dois grandes grupos: as eficácias intersubjetivas e eficácias trans-subjetivas.

No grupo das eficácias intersubjetivas está a possibilidade da imposição de deveres positivos aos contratantes, pois o direito subjetivo de contratar (direito de liberdade) já nasce conformado a certos deveres de prestação. (a) O grupo dos contratos que instrumentalizam a propriedade de bens de produção tem uma interface direta com o princípio da função social da empresa e com o princípio da função social da propriedade. Em ambos os campos a nota dominante é a da prevalência dos valores e interesses comunitários sobre os individuais. A especial densidade da empresa na vida comunitária está na raiz de deveres negativos e positivos, alguns deles pontualmente previstos em leis, outros derivados da conexão do princípio da função social com outros princípios constitucionais e legais, como a proteção ao meio-ambiente ou a redução das desigualdades regionais. (b) Por sua vez, a idéia de contratos que viabilizam “prestações essenciais” para uma das partes foi posta por Teresa Negreiros ao considerar como eixo para a concretização da “função social” não “o contrato”, instrumento jurídico, mas o objeto (ou bem da vida) que o contrato visa instrumentalizar. Tanto mais essencial for, para as partes, o bem da vida subjacente ao objeto contratual (como no seguro de vida, no seguro-saúde, no fornecimento de água e energia elétrica, nos transportes etc), maior deve ser a intervenção estatal. (c) Por fim, como item da taxinomia contratual a noção de contratos comunitários. Uma vez que num dos pólos não está meramente o interesse de uma soma aritmética de “individualidades”, mas interesses supra-individuais ou coletivos. Na apreciação desses contratos, os direitos subjetivos de cada um dos contratantes não podem ser vistos de modo atomístico, como se cada um fosse uma entidade isolada, envolvido na hobbesiana luta de todos contra todos.

É, porém, na geração de eficácias trans-subjetivas que reside a função que mais de perto está ligada no em razão da e a que mais fundamente poderá inovar a teoria do contrato. Em termos amplíssimos, significa: o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetadas. A hipótese pode ser exemplificada mediante o recurso a três grupos de situações. (a) Tutela externa do crédito. O problema central está em saber se um terceiro (que não é “parte” no contrato) pode ser responsabilizado, perante o credor, por lesar o direito de crédito, ou, noutra perspectiva, por interferir com o contrato obrigacional. Esse problema implica em, entre outras, saber se é juridicamente possível a interferência de um terceiro sobre o crédito. (b) Outro importante grupo de casos diz respeito à consideração da eficácia na esfera de terceiros determinados. Seu fundamento está na continuidade e na interferência entre esferas de interesse, que se congregam, em múltiplas esferas na vida de relações contratuais, por forma a impor aos gestores das esferas contíguas limites internos que, na convivência ordenada e civil, descendem da socialidade. (c) A mais prestante – e inovadora – eficácia do art. 421 diz respeito, no entanto, à extensão da eficácia – positiva e negativa – a terceiros não-determinados e a bens de interesse comum. Como exemplos que de imediato saltam à mente estão os contratos que, de alguma forma, envolvem o meio ambiente e a tutela da concorrência. Atividade contratual não apenas deve ser não-lesiva; antes, deve ser promocional do meio-ambiente. Como conseqüência, não apenas a responsabilidade contratual pela segurança e garantia do meio-ambiente deve ser estendida a toda a cadeia contratual, caso haja dano, quanto impõe-se aos contratantes deveres positivos de atenção, prevenção, resguardo e fiscalização.

O art. 421 potencializa e permite interpretação ampliativa dos dispositivos legais referentes à promoção da livre concorrência, além de legitimar a imposição de deveres positivos. Aqui está o verdadeiro salto qualitativo que se encontra no art. 421: o entender-se que a liberdade de cada um se exerce de forma ordenada ao bem comum, expresso na função social do contrato, pressupondo internamente conformado o direito de liberdade (de contratar) em campos de especial relevância ao bem comum. Por isso a importância de permanecer, no texto legal, a expressão em razão que, infelizmente, alguns doutrinadores cogitam eliminar.

Marcos Katsumi Kay – N1